SÓ
O INFERNO NÃO TEM FRONTEIRAS
João
Eichbaum
A
madrasta a tinha vendido para um desconhecido, sem que ela o soubesse. Dominada
por um homem barbudo, de braços nodosos, foi jogada inerme no porta-malas de um
automóvel. Debalde berrou, se esbateu, gritou por socorro. Sufocada, sem ar,
chorando, acabou dominada pelo cansaço.
Desembarcaram-na
na Líbia, para fazer dela uma escrava sexual. Ela, que nunca tinha encostado
sua carne na carne de um homem, se negou ao vilipêndio. Então lhe cuspiram no
rosto e a submeteram ao suplício: deitaram-na por terra, amarrando-a com o
rosto voltado para o sol. Inerte, sem comida, sem água, o rosto ardido pelas
queimaduras, não teve alternativa, senão deixar que lhe extirpassem a
dignidade.
Foi
jogada no quarto de um prostíbulo imenso e sombrio. Ali, soldados, homens de
Gana, da Nigéria e da Líbia, faziam dela o escoadouro de sua lascívia animal.
Escarravam nela, espancavam-na. Sob a mira das pistolas dos soldados, era
obrigada a lhes satisfazer a luxúria mais sórdida, aquela de que só são capazes
as bestas humanas. Por vezes, mais de cinquenta homens dela se serviram, num só
dia.
Conseguiu
fugir, enganada por uma mulher que, sob a promessa levá-la de volta a seu país,
a explorou no meretrício. Fugiu novamente, sendo levada por outro explorador do
sexo, num desses barcos clandestinos, que despejam migrantes na costa da
Itália. Primeiro em Nápoles e depois em Roma, passou a fazer a única coisa que
sabia: prostituir-se. Engravidou, foi repudiada pelos os homens. Foi dormir na
rua, vivia de esmolas. Recolhida numa instituição social, exames médicos
revelaram: está com HIV. Mas não quer abortar, não quer matar o filho de um pai
que nem sabe quem é.
A
história dessa criatura, Adije, nigeriana de 24 anos, é uma, entre outras de
vários migrantes, contadas pela escritora e jornalista argentina Mori Ponsowi,
na revista Piauí. São histórias de seres humanos que, fugindo da desgraça, ou
são tragados pelo mar, ou esbarram nas fronteiras da esperança, fechadas por
seus donos, os países ricos.
Assim
vai a vida na terra. Enquanto alguns celebram o esplendor da noite dos
esponsais, outros são condenados à morte. É abissal a desigualdade que separa
os que sofrem dos que soltam seu riso superior. Quimeras de sociólogos e
filósofos e orações do papa têm o mesmo efeito das opiniões dos motoristas de
táxi: nada resolvem. Por tudo isso, perdido num universo que tem as próprias
leis, o homem não consegue se desvencilhar dos estigmas da animalidade, do
egoísmo e da maldade, que o tornaram o pior espécime do gênero a que pertence,
depois que perdeu o pelo e o rabo.
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