MIAMI É MELHOR QUE FORTALEZA
Mariléia
Sell
Uma
experiência sociológica interessante é ficar presa em uma fila, falo presa
porque a fila é um lugar compulsório. Inútil resistir, debater-se; a fila é um
exercício de resignação, um estágio para a evolução espiritual. Não conheço
ninguém que goste de filas, que opte deliberadamente por ficar em filas, embora
deva existir alguém nesse mundo. Sempre tem gente do contra! Mas não
subestimemos a potência da fila; este lugar tão mundano e tão ordinário já foi
merecedor de complexos estudos etnográficos, justamente por revelar práticas
sociais igualmente complexas.
Bem,
depois de depositar meus 39 itens de metal, conseguir passar pela porta
giratória do banco e retirar a senha 4.398, instalei-me em uma cadeira
estofada. Hoje em dia, o tempo perdido da espera é compensado com cadeiras
estofadas. Quando as hérnias de disco não latejam, os clientes reclamam menos.
Comecei a olhar fixamente para o painel das senhas, mas isso, como sabemos, só
piora a espera. De repente, meus ouvidos deslizam para uma conversa entre duas
senhoras ao meu lado. Elegantes senhoras. Penteadas e escovadas. Cheias de
joias. As bolsas custariam o equivalente a um ano de trabalho de uma
professora.
O assunto era viagens. Comecei a me concentrar no tópico, pensando
nas férias, sempre tão desejadas e tão distantes no horizonte. Me disfarcei
toda, para que não percebessem minha orelha espichada. Olhei reto para frente,
para o moço do caixa, magro e desanimado, provavelmente necessitado de férias.
O meu ar blasé encobria um genuíno interesse científico; queria entrar no mundo
delas. Se me notassem, entretanto, as falas das elegantes senhoras não teriam
valor sociológico, pensei. É preciso ter método!
Tinham
estado no Nordeste, as senhoras. Em Fortaleza, mais especificamente. Não se
cansavam de elogiar as praias e o hotel magnífico, à beira mar. Já no café da
manhã, eram mimadas com tapiocas e frutas exóticas por intermináveis garçons.
Tomando sucos de mangaba, apreciavam os coqueiros balançando suavemente. A
paisagem as fazia esquecer do frio do Sul. O Sul era terra de extremos! Mangaba
é riquíssima em vitamina C; excelente para a pele, lembraram, saudosas. As
tapiocas há muito já estavam nas suas cozinhas, por ser um alimento leve, ideal
para manter a forma.
A essas
alturas, eu já estava tomando coco em alguma praia paradisíaca, mas meu idílio
durou pouco. A viagem das senhoras não foi só alegrias; infelizmente elas
passaram por alguns desconfortos. Em Fortaleza, havia muita gente feia,
lamentaram. A feiura é sempre um elemento a ser lamentado! Horrorizavam-se com
as peles tão descuidadas, tão esturricadas pelo sol, tão carentes de vitaminas
e de sais minerais. Até as crianças já pareciam velhas em miniaturas. “Não
comem proteína”, concluíram em uníssono. Como pode alguém não saber dos
malefícios do sol? É tão amplamente divulgado hoje em dia! Mulheres de 25 anos
aparentavam ter 45 ou mais. Um verdadeiro horror todo esse desleixo com a
aparência! Os cabelos também eram descuidados, ressecados, espetados. Mas isso
seus olhos sensíveis até superariam, não fossem os dentes. Como conviver com
esses sorrisos murchos?
Também
as aborreceu a abordagem invasiva dos nativos. Os vendedores ambulantes não as
deixavam em paz por um segundo. Facilmente passavam por gringas, tão brancas
que eram: “um verdadeiro assédio”. Como não se incomodar com os corpos tortos e
ressecados carregando o mundo para vender? Corpos inclinados com o peso da
mercadoria. Com o peso da sobrevivência. Inegavelmente, a estética da pobreza é
algo que incomoda. Com tanta falta de beleza, ficou impossível para as senhoras
abstraírem da realidade e relaxarem. E quem não precisa, nos tempos que correm,
abstrair da realidade? Realidade demais estressa; terreno fértil para os
radicais livres. E se há algo a ser evitado nessa vida são os radicais livres.
Eles envelhecem.
As
próximas férias precisam, definitivamente, ser melhor planejadas, ponderam
seriamente. No Nordeste fica difícil para as simpáticas senhoras esquecerem que
estão no Brasil. Considerariam seriamente Miami. Se o dólar ajudar!
Mariléia
Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos
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