NÃO SOU SUA QUERIDA
Mariléia
Sell
Aconteceu
de novo. Não é a primeira e, certamente, não será a última vez que fui chamada
de “querida” em uma reunião de trabalho. A diferença é que agora não fico mais
com aquela sensação de incômodo, aquela sensação de desajuste por não ser
levada à sério. Agora eu interrompo, para espanto de todos e de todas, quem se
dirige a mim dessa forma e digo: “para você, sou professora”.
Evidentemente,
nem todos os homens que fazem uso do termo o fazem com a intenção de diminuir a
mulher. Da mesma forma, nem todas as mulheres reconhecem esse uso como uma
expressão machista. Um machismo carinhoso, um machismo cavalheiro, mas, ainda
assim, um machismo. Estudiosos e estudiosas da análise crítica do discurso vão
dizer que é justamente por isso que esse tipo de manifestação, disfarçada de
elogio, revestida pelo verniz da gentileza, é tão poderosa, porque ela opera no
campo do simbólico, não é tão visível quanto uma agressão verbal, um tapa, um
chute, um empurrão do quarto andar. É uma manifestação que confunde a percepção
dos mais desavisados e das mais desavisadas.
Não é
novidade para ninguém que as mulheres brasileiras têm baixíssima
representatividade na política e em outros espaços de poder, mesmo que sejamos
a maioria em termos de contingente populacional. De 188 países, ocupamos a
vergonhosa posição 142 no que se refere a representação no Poder Legislativo.
Isso não vem de graça, vem de uma longa trajetória de desequilíbrio e de
perpetuação de mecanismos de desvalorização, sutis ou escancarados, das
mulheres. No imaginário social, a mulher sempre esteve atrelada ao mundo
doméstico, à maternidade, ao cuidado. Associada às tarefas não remuneradas. Aos
homens, sempre couberam as tarefas do mundo externo: a política, as ciências,
os negócios, enfim, as tarefas sérias, que exigem comando, raciocínio e
decisão.
Assim, toda vez que uma mulher é chamada de “querida”, “anjo”,
“linda”, “meu bem”, “docinho”, “princesa”, “menina”, “guria” no ambiente de
trabalho ela é arremessada de volta ao ambiente privado, doméstico, porque esse
tipo de manifestação acontece entre pessoas íntimas, na esfera privada. Sempre
que uma mulher não é tratada com o mesmo respeito e distanciamento que se tem
para com os homens no ambiente profissional, ela é empurrada para um espaço de
menor valor social, um lugar de não reconhecimento, um lugar de desqualificação
e de invisibilidade.
Quem não
lembra da emblemática expressão “tchau, querida”, quando a maioria masculina do
congresso votou pelo impedimento da presidenta? Ora, esse uso foi uma alusão à
forma como o ex-presidente Lula despediu-se da presidenta em alguns dos áudios
vasados pela Polícia Federal. Ou seja, a expressão foi usada na esfera privada,
não foi pensada para o espaço público. Quando essa expressão é deslocada do seu
lugar de produção, ela assume um tom de deboche, de ironia, de desrespeito à
mulher Dilma. É como dizer: “vai, querida, aqui não é o teu lugar”. É
como dizer, fazendo coro à Revista IstoÉ, “volta para casa, querida, você é uma
desequilibrada e uma histérica, não serve para o complexo jogo político”. É
como dizer, com a condescendência de um pai, “querida, acredite, eu sei como as
coisas funcionam”.
Pois eu
não estou disposta a voltar para casa. E não sou sua querida. Aliás, anda pouca
a minha disposição para ser querida.
Mariléia
Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos
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