O DIABO MORA COMIGO
Mariléia
Sell
Elisabete
acorda sobressaltada. Não sabe das horas. Pela janela, enxerga que o dia ainda
não amanheceu. “Deve ser madrugada”, pensou, desorientada, mal lembrando quem
era e onde estava. Mal controlando o coração e as pernas que sacudiam em
tremores. Passara outra noite correndo. Corria sempre. E não tinha paz porque
precisava correr. Cansava-se porque a sua sina era correr.
Aprendera
técnicas de respiração para acalmar-se. Inspirava e contava até três, retinha o
ar e contava até três, expirava e contava até três. Respirava até escorregar
para o sono novamente. O cheiro de cânfora causava-lhe um sobressalto nas
tripas, um arrepio de náusea. Uma pedra bem no centro do estômago queria ser
vomitada. Precisava vomitar. O expurgo do vômito também a acalmava. O
cheiro da cânfora era desses cheiros que não saíam da pele: não havia água e
sabão no mundo que dessem conta dessa limpeza. Aquele óleo fedorento entrara no
seu sangue. Era isso. Só podia ser isso. O cheiro vinha de dentro. Isso
explicava porque era impossível de lavar. E não era por falta de esforço:
Elisabete perseguia obsessivamente a limpeza. Sua pele aberta em vergões
vermelhos era a prova viva do seu esforço. A purificação exigia muita
penitência, ela sabia.
Era
sempre à noite que os demônios a visitavam; sentavam-se confortavelmente no
sofá da sala e a esperavam para dormir. Eram a sua companhia mais constante e
mais fiel nesta vida. E não tinham pressa, os demônios. Demônios têm outra
relação com o tempo. E não adiantava procrastinar, ela já tentara enganá-los.
Mas uma hora era preciso dormir. Elisabete sentia-se observada pelas frestas
da casa mal juntada por tábuas irregulares. Eram olhos que a invadiam.
Olhos que penetravam o seu corpo de menina. Olhos que lhe roubavam algo. Algo
de que sentiria falta para sempre. Seus banhos eram cada vez mais rápidos, já
não lavava mais o cabelo; demorava demais. Um dia decidiu não tomar mais banho.
Mas os olhos, aqueles olhos, a perseguiriam para sempre. Sua sina era também a vigilância.
Sentada na cama, encharcada de suor, demora alguns segundos para perceber que
não está na sua casa da infância. Rapidamente, percorre o quarto com os olhos
para ter certeza de que não há frestas. De que não há olhos observando-a.
Inicia o seu ritual de respiração. Um. Dois. Três.
Por
estar sempre em fuga e sempre vigilante, Elisabete sente não pertencer a lugar
nenhum, não havia lugar seguro no mundo, nem relações seguras. Ela era uma
retirante. Uma retirante em busca da terra prometida. Uma terra em que pudesse
ter paz, em que pudesse descansar, em que pudesse dormir sem ter pesadelos.
Essa terra seria tão longínqua que nem os demônios a encontrariam. Mas os
demônios, ela sabia, e sabia com a certeza de quem é íntima deles, são muito
espertos. Eles esperam, pacientemente, momentos não vigiados.
Não há
fuga possível. Mais uma vez, acorda com o seu próprio grito em horas
incertas na madrugada. Estava sozinha com ele. Ele era tão grande, era o senhor
da casa e de todos que ali viviam. Mandava todos os irmãos saírem. Que
brincassem na rua! Era a hora da sua própria diversão, não queria interrupções.
Ele a massageava com óleo de cânfora. Escutara uma conversa dela com a mãe,
conversa privada de mãe e filha, em que reclamava que seus peitos doíam. Doíam
porque começavam a crescer. Como feijões, começavam a saltar por debaixo das
blusas. Elisabete odiava os seus peitos. Odiava o seu corpo em transformação.
Odiava a si mesma. Se não tivesse um corpo, nada disso aconteceria.
Mais uma
vez, respirava. Respirava e chorava. Mas, dessa vez, encontraria o seu lugar no
mundo. Encontraria a paz. Quanto mais tragasse o ar, mais próxima chegava de um
alívio absoluto. Dormiria para sempre, pensou, por fim, satisfeita com a
solução. Não haveria mais fuga e nem vigilância. O caminho para a terra
prometida abria-se, estava ao alcance das mãos. Estava dentro de uma caixa com
tarja preta; bastaria um punhado de comprimidos. E então, o silêncio completo.
A redenção exigia sacrifícios extremos, ela agora sabia.
Mariléia
Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos
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