OS MISERÁVEIS
Mariléia
Sell
O
trajeto para o trabalho, uns 15 minutos de carro, fornece material empírico
suficiente para um tratado sociológico dos tempos modernos. Um tratado sobre
modelos políticos e econômicos. A cada sinal de trânsito, o desfile da falência
social. Uma exposição ilustrada da incompetência do Estado. No caminho da ida,
no mesmo sinal, todos os dias, encontro o mesmo pedinte. “Tem um troquinho, pra
eu comer”? Quase sempre digo que não tenho e quase sempre ele me adverte que
podia estar roubando. Quando alcanço algumas moedas, ele sorri um sorriso largo
e sem dentes e me abençoa: “que Deus proteja a senhora e sua família”. Digo
amém, enquanto tento me desvencilhar do moço do abacaxi, “o mais doce e barato
da região”. “Não gosto de abacaxi”, esclareço. “Leva para o marido”,
insiste. “Não tenho um marido”, rebato. “Mas de bergamota a senhora gosta, né?
Só cinco reais o balde”. Ou morango? “São quatro caixas à dez pila”. Pelo
retrovisor, vejo o moço da rapadura e dos panos de prato avançando. Ele chega
tarde no vidro do carro; o sinal abriu. Piso no acelerador e respiro aliviada.
Acelero
e torço para que o próximo sinal esteja verde. Não está. É o sinal dos índios.
A mãe fica com um olho no artesanato e outro nas crianças que se esgueiram
entre os carros para vender filtros de sonhos. E ainda outro olho no bebê
que está amamentando. A crise também atingiu o mercado dos filtros de sonhos. A
saída é pedir uma “moedinha”. No mesmo sinal, de infinitos tempos, tem também o
moço com deficiência. Está lá desde que o mundo é mundo. Costuma fixar seus
olhos grandes e saltados diretamente no olho dos motoristas e das motoristas. E
ali fica. Até abrir o sinal. Se ao menos ele fosse embora depois de ouvir que
não receberá dinheiro. Mas não. Ele fica. E fica olhando. Seus olhos atravessam
o vidro do carro. Não há blindagem possível para aqueles olhos.
Prego os
meus olhos nas lâmpadas do sinal, à frente, no alto. Como pode um semáforo
demorar tanto a abrir, penso, com a sensação de estar ali desde a Idade Média.
Enquanto espero, posta-se na frente do meu carro o moço do cartaz de papelão,
com letras irregulares e mal calculadas. Daqueles cartazes em que a letra
começa grande, cheia de pretensões, e, lá pelas tantas, vai diminuindo porque o
escrevente percebe que não haverá espaço suficiente. Ele está juntando dinheiro
para comprar um lanche. “Sou morador de rua e estou com fome. Me ajude com 10
centavos. Deus abençoe”. O “abençoe” ficou seriamente prejudicado pelo
erro de cálculo do cartaz. Ficou espremido e, na verdade, só é legível porque,
pelo nosso conhecimento de mundo, acomodamos o par relacional Deus e abençoar
no mesmo campo semântico.
Sigo,
impávida, pelo caminho menos movimentado para o meu trabalho, pela linha do
trem, o mais novo condomínio dos miseráveis. Protegidos pela estrutura colossal
de cimento, erguem suas casas de papel e de lata. E improvisam quintais para os
seus cavalos. Ostensivamente, estacionam as suas carroças de reciclados. Os
seus arranjos interferem na paisagem urbana. Tão planejada que foi essa obra do
trem, para não trazer prejuízos estéticos à cidade! São os miseráveis da era
moderna, aqueles cuja existência é uma afronta à vida imperturbada em nossas
bolhas. Aqueles que, incomodamente, nos lembram no nosso fracasso
enquanto humanidade. Os indesejados.
Mariléia
Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos
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