sexta-feira, 2 de novembro de 2018


O TRIBUNAL SOU EU
João Eichbaum
Escassas narrativas ilustram os fatos que levaram Raquel Dodge a ajuizar “arguição de descumprimento de preceito fundamental”, à véspera do segundo turno das eleições. Segundo ZH, juízes eleitorais teriam “determinado a retirada de uma bandeira” colocada na fachada do prédio da Universidade Federal Fluminense, onde se lia “DIREITO UFF Anti-Fascista”, e mandado suspender uma “aula pública” sobre fascismo na Universidade de Dourados. Os magistrados viam, nesses atos, propaganda irregular, vedada por lei.
Esse nome horrível, “arguição de descumprimento de preceito fundamental”, é dado a um procedimento de jurisdição específica do STF. Trata-se de processo limitado. Só será admitido, se não houver outros meios processuais. Eventual liminar exige a maioria dos ministros. Apenas por exceção, o relator poderá deferir liminar, havendo “extrema urgência ou perigo de lesão grave”, ou durante recesso do Supremo.
Tudo isso está na Lei 9.882/99: § 1º do art. 4º e artigos 5º, § 1º, e 8º, que qualquer pessoa verdadeiramente alfabetizada entenderá, sem recorrer a advogados ou a dicionários. Mas, a senhora Carmen Lúcia concedeu liminar, determinando que a bandeira permanecesse onde estava e que a “aula pública” fosse realizada. Tudo isso, a 48 horas de uma eleição, de que participava um candidato acoimado de fascista.
Ora, qualquer advogado sabe que, das decisões judiciais preliminares, cabe, conforme o caso, mandado de segurança, ou habeas corpus, ou agravo, para a preservação de direitos. A “arguição de descumprimento de preceito fundamental”, assim chamada por pobreza de elocução, não pode substituir aquelas medidas. E mais: o espírito da Lei 9.882, insculpido nos art. 5º e 8º, cinzela em relevo a jurisdição absoluta do STF. Não é preciso ser “professor” de Direito Constitucional para enxergar isso. A exceção não pode ser vulgarizada, usada para acomodar banalidades. Sua natureza repele o corriqueiro, exorciza o trivial, passa ao largo daquilo que é comum nas relações sociais.
Quem é que enxerga “extrema urgência” na banalidade de hastear bandeira contra o que quer que seja, ou de realizar “aula pública” sobre qualquer tema? Perigo de lesão grave? Quem estaria sendo ameaçado de lesão? A bandeira? Que lesão seria causada e que circunstâncias definiriam sua gravidade, se a “a aula pública” não se realizasse naquele dia? Há lesões graves ou menos graves ao Direito? Quanto ao STF, não consta que estivesse em recesso.
Enfim, a bandeira foi hasteada e a aula pública se consumou, em nome do “direito de expressão”. O que Raquel Dodge pediu, levou. E o processo morreu ali, naquele pingue-pongue, entre ela e a Carmen Lúcia, jogo do qual saiu ferido o Direito. Acontece que a Constituição é um todo orgânico: não permite o aniquilamento de um direito, para a garantia de outro. Carmen Lúcia deixou nu o “direito ao contraditório” para vestir o “direito de expressão”, com ondulações românticas. Como se não bastasse, se sobrepôs à competência absoluta do Tribunal. Então, outro papel não sobrou para a Constituição Federal, nesse cenário, senão o de servir como livrinho de histórias para as futuras gerações de analfabetos funcionais.




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