O
TRIBUNAL SOU EU
João
Eichbaum
Escassas
narrativas ilustram os fatos que levaram Raquel Dodge a ajuizar “arguição de descumprimento
de preceito fundamental”, à véspera do segundo turno das eleições. Segundo ZH,
juízes eleitorais teriam “determinado a retirada de uma bandeira” colocada na
fachada do prédio da Universidade Federal Fluminense, onde se lia “DIREITO UFF
Anti-Fascista”, e mandado suspender uma “aula pública” sobre fascismo na
Universidade de Dourados. Os magistrados viam, nesses atos, propaganda
irregular, vedada por lei.
Esse
nome horrível, “arguição de descumprimento de preceito fundamental”, é dado a um
procedimento de jurisdição específica do STF. Trata-se de processo limitado. Só
será admitido, se não houver outros meios processuais. Eventual liminar exige a
maioria dos ministros. Apenas por exceção, o relator poderá deferir liminar, havendo
“extrema urgência ou perigo de lesão grave”, ou durante recesso do Supremo.
Tudo
isso está na Lei 9.882/99: § 1º do art. 4º e artigos 5º, § 1º, e 8º, que
qualquer pessoa verdadeiramente alfabetizada entenderá, sem recorrer a
advogados ou a dicionários. Mas, a senhora Carmen Lúcia concedeu liminar,
determinando que a bandeira permanecesse onde estava e que a “aula pública”
fosse realizada. Tudo isso, a 48 horas de uma eleição, de que participava um
candidato acoimado de fascista.
Ora,
qualquer advogado sabe que, das decisões judiciais preliminares, cabe, conforme
o caso, mandado de segurança, ou habeas corpus, ou agravo, para a preservação
de direitos. A “arguição de descumprimento de preceito fundamental”, assim
chamada por pobreza de elocução, não pode substituir aquelas medidas. E mais: o
espírito da Lei 9.882, insculpido nos art. 5º e 8º, cinzela em relevo a
jurisdição absoluta do STF. Não é preciso ser “professor” de Direito
Constitucional para enxergar isso. A exceção não pode ser vulgarizada, usada
para acomodar banalidades. Sua natureza repele o corriqueiro, exorciza o
trivial, passa ao largo daquilo que é comum nas relações sociais.
Quem
é que enxerga “extrema urgência” na banalidade de hastear bandeira contra o que
quer que seja, ou de realizar “aula pública” sobre qualquer tema? Perigo de
lesão grave? Quem estaria sendo ameaçado de lesão? A bandeira? Que lesão seria
causada e que circunstâncias definiriam sua gravidade, se a “a aula pública”
não se realizasse naquele dia? Há lesões graves ou menos graves ao Direito? Quanto ao STF, não consta que estivesse em
recesso.
Enfim,
a bandeira foi hasteada e a aula pública se consumou, em nome do “direito de
expressão”. O que Raquel Dodge pediu, levou. E o processo morreu ali, naquele pingue-pongue,
entre ela e a Carmen Lúcia, jogo do qual saiu ferido o Direito. Acontece que a
Constituição é um todo orgânico: não permite o aniquilamento de um direito,
para a garantia de outro. Carmen Lúcia deixou nu o “direito ao contraditório”
para vestir o “direito de expressão”, com ondulações românticas. Como se não
bastasse, se sobrepôs à competência absoluta do Tribunal. Então, outro papel
não sobrou para a Constituição Federal, nesse cenário, senão o de servir como
livrinho de histórias para as futuras gerações de analfabetos funcionais.
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