sexta-feira, 12 de julho de 2019


A FALTA QUE FAZ O BOM VERNÁCULO

João Eichbaum
Do texto de um juiz que se apresenta como "doutor em Direito Penal”, a ZH destaca o seguinte tópico: “o escopo de criminalizar a magistratura deve ser tomado com o mais absoluto repúdio”. O meritíssimo estava a falar do projeto de lei que tipifica como crimes de abuso de poder algumas condutas de magistrados. Donde se conclui que o objeto de sua crítica é a “intenção” de aprovar o referido projeto.

Mas não foi isso que ele disse. Pensou uma coisa e disse outra. Intenção não é sinônimo de “escopo”. Intenção significa desejo, vontade, propósito de realizar alguma coisa. O sentido de “escopo’ é finalidade, alvo, objetivo. No caso, a intenção de criar o crime de abuso de poder tem o escopo de limitar o poder dos juízes, restringindo-lhes o espaço para o exercício de seu poder.

O emprego da palavra “escopo”, no sentido de “propósito” só cabe depois de ser definida uma ação que indique vontade, desejo, intenção. Sem vontade, sem propósito dirigido, não se chega a escopo algum.

“Criminalizar” a magistratura? Criminalizar quer dizer “tornar crime alguma conduta”, definir como delituoso algum comportamento. Em linguagem técnica, o verbo adequado é “tipificar”. Então “criminalizar a magistratura” nada significa na linguagem jurídica. No direito penal só se criminalizam condutas, procedimentos, comportamentos, ou seja, ações, e ações só podem ser definidas por verbos. Os crimes são tipificados por meio de verbos, e não de substantivos. Magistratura é substantivo coletivo, que indica a categoria dos magistrados e, assim sendo, não pode ser objeto de punição penal.

Como se esses tropeços no vernáculo e na nomenclatura jurídica não fossem suficientes, o doutor em Direito Penal conclui que o “escopo de criminalizar a magistratura deve ser tomado com o mais absoluto repúdio”. O verbo “tomar” aqui foi empregado, provavelmente, no sentido de “receber”.

Ora, quem repudia, não recebe. A contradição neutraliza o sentido da frase, reduzindo-a a um amontoado de palavras que retiram a autoridade do autor do texto como formador de opinião.

 Mas, pior do que isso é a qualificação do substantivo repúdio: “absoluto repúdio”. Haverá repúdio “relativo”, ou qualquer outro tipo de repúdio que não contenha em si mesmo todo o sentido da palavra? Repúdio é repúdio, e pronto. É um substantivo que não necessita de adjetivos para definir sua extensão ou exprimir sua intensidade.

Trata-se, enfim, de um texto coleante, obtuso, que mais serve para mostrar as dificuldades do autor em se comunicar, tanto na linguagem jornalística quanto na linguagem acadêmica, do que para esclarecer seus pontos de vista. À linguagem jornalística repugnam expressões rebuscadas, vocábulos postiços, catados no dicionário. A linguagem acadêmica exige o rigor científico de premissas bem definidas, que atraiam a conclusão.

Mas o caso do doutor não é isolado. De um modo geral, os trabalhadores do processo não dominam a contento seu único instrumento de trabalho, que é a linguagem. O “copia e cola”, favorecido pela tecnologia, e a mão de obra dos assistentes, secretários e estagiários, dispensam muitos juízes, advogados e membros do Ministério Público do exercício diuturno da redação, empobrecendo seu vernáculo. Então eles se abastecem no dicionário.

  

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