A FALTA QUE FAZ O BOM VERNÁCULO
João Eichbaum
Do texto de um juiz que se apresenta
como "doutor em Direito Penal”, a ZH destaca o seguinte tópico: “o escopo
de criminalizar a magistratura deve ser tomado com o mais absoluto repúdio”. O
meritíssimo estava a falar do projeto de lei que tipifica como crimes de abuso
de poder algumas condutas de magistrados. Donde se conclui que o objeto de sua
crítica é a “intenção” de aprovar o referido projeto.
Mas não foi isso que ele disse. Pensou
uma coisa e disse outra. Intenção não é sinônimo de “escopo”. Intenção
significa desejo, vontade, propósito de realizar alguma coisa. O sentido de
“escopo’ é finalidade, alvo, objetivo. No caso, a intenção de criar o crime de
abuso de poder tem o escopo de limitar o poder dos juízes, restringindo-lhes o
espaço para o exercício de seu poder.
O emprego da palavra “escopo”, no
sentido de “propósito” só cabe depois de ser definida uma ação que indique
vontade, desejo, intenção. Sem vontade, sem propósito dirigido, não se chega a
escopo algum.
“Criminalizar” a magistratura?
Criminalizar quer dizer “tornar crime alguma conduta”, definir como delituoso
algum comportamento. Em linguagem técnica, o verbo adequado é “tipificar”.
Então “criminalizar a magistratura” nada significa na linguagem jurídica. No
direito penal só se criminalizam condutas, procedimentos, comportamentos, ou
seja, ações, e ações só podem ser definidas por verbos. Os crimes são
tipificados por meio de verbos, e não de substantivos. Magistratura é
substantivo coletivo, que indica a categoria dos magistrados e, assim sendo,
não pode ser objeto de punição penal.
Como se esses tropeços no vernáculo e
na nomenclatura jurídica não fossem suficientes, o doutor em Direito Penal
conclui que o “escopo de criminalizar a magistratura deve ser tomado com o mais
absoluto repúdio”. O verbo “tomar” aqui foi empregado, provavelmente, no
sentido de “receber”.
Ora, quem repudia, não recebe. A
contradição neutraliza o sentido da frase, reduzindo-a a um amontoado de
palavras que retiram a autoridade do autor do texto como formador de opinião.
Mas, pior do que isso é a qualificação do
substantivo repúdio: “absoluto repúdio”. Haverá repúdio “relativo”, ou qualquer
outro tipo de repúdio que não contenha em si mesmo todo o sentido da palavra?
Repúdio é repúdio, e pronto. É um substantivo que não necessita de adjetivos
para definir sua extensão ou exprimir sua intensidade.
Trata-se, enfim, de um texto coleante,
obtuso, que mais serve para mostrar as dificuldades do autor em se comunicar,
tanto na linguagem jornalística quanto na linguagem acadêmica, do que para
esclarecer seus pontos de vista. À linguagem jornalística repugnam expressões
rebuscadas, vocábulos postiços, catados no dicionário. A linguagem acadêmica
exige o rigor científico de premissas bem definidas, que atraiam a conclusão.
Mas o caso do doutor não é isolado. De
um modo geral, os trabalhadores do processo não dominam a contento seu único
instrumento de trabalho, que é a linguagem. O “copia e cola”, favorecido pela
tecnologia, e a mão de obra dos assistentes, secretários e estagiários,
dispensam muitos juízes, advogados e membros do Ministério Público do exercício
diuturno da redação, empobrecendo seu vernáculo. Então eles se abastecem no
dicionário.
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