DAS NOVELAS
JUDICIÁRIAS DE CADA DIA
João
Eichbaum
A polícia apreendeu quatro mil e quinhentos
quilos de maconha estocados num depósito em Porto Alegre. No local foram presos
seis homens, alguns dos quais pesavam a droga. A juíza plantonista, depois de
escrever no despacho que “foram observados os direitos constitucionais penais e
processuais penais dos flagrados satisfatoriamente", ainda transformou o
flagrante em prisão preventiva, pois – segundo a meritíssima – “restou abalada
a ordem pública pelos indícios de tráfico de drogas e associação para o
tráfico, transitando para além da mera tipicidade dos fatos imputados".
Mas, vinte e
quatro horas depois, no capítulo seguinte, mudou o enredo da novela. A juíza
deve ter pensado e repensado, decerto perdeu horas de sono, se revirou na cama,
contou carneirinhos e resolveu resgatar a paz de sua alma. Decidiu realizar “audiência
de custódia”. Não prevista na
legislação brasileira, é uma encenação de inocência entre lágrimas e ranhos, que
dá as costas para a sociedade e favorece delinquentes. Parida pela filosofia do
coitadismo no Pacto de San José da Costa Rica, a tal de audiência gera a
seguinte regra: se apanhou não vai preso.
De modo que, no
dia seguinte, lá estavam, na frente da juíza, “os flagrados satisfatoriamente”.
Eles mesmos, aqueles que tinham abalado a “ordem pública pelos indícios de
tráfico de drogas e associação para o tráfico”, um dia antes. Então, assumiram
ares de coitadinhos e desfilaram perante a juíza. Um tinha levado tijoladas nas
costas e no pescoço. Outro tinha sido “obrigado a dar informações sobre o
fato”. Um terceiro teria levado chutes na barriga, nas costas, nos joelhos e
nas pernas... Mas, ninguém se queixou de chute nos bagos, para não ter que
exibir diante da juíza um pinto daquele tamanhinho.
O que realmente
impressionou a magistrada foi a camisa de um deles “com manchas aparentemente
de sangue”. Então, nada
feito. Ficou o dito pelo não dito. A juíza revogou o próprio despacho. Que
ordem pública, que nada! Abalada ficou ela, a meritíssima, que deve ter tido
seu coração desmanchado pelas lágrimas que o inundaram. Liberou os cidadãos, em
nome dos direitos humanos.
De certo, convencida de que tem poderes
para refundar a vida dos criminosos, trocando a lei pelo enternecimento,
substituiu as grades da prisão por piedosas recomendações de preceptora aos
meninos: compromisso de apresentação mensal em juízo para informar e justificar
suas atividades; proibição de se ausentar da comarca de Porto Alegre, sem
autorização desse juízo, a não ser que conte com autorização judicial; não se
envolver em novos crimes; recolher-se das 20h às 6h, sob pena de revogação da
liberdade provisória. Só faltou a obrigação de comparecer à missa das sete.
Pelo visto, os
tentáculos do tráfico de drogas, que viciam, corrompem, roubam, ferem e matam,
têm também o poder incomensurável de transformar delinquentes em monges. Mas
deles não se beneficiam os trabalhadores que moram na periferia. Esses são
esfolados no transporte público entre sua casa e o trabalho. Saem pela
madrugada e voltam à noite. Não lhes é concedido o privilégio de um longo
descanso, entre as 20h e as 6h.
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