sexta-feira, 26 de julho de 2019


DAS NOVELAS JUDICIÁRIAS DE CADA DIA
João Eichbaum
A polícia apreendeu quatro mil e quinhentos quilos de maconha estocados num depósito em Porto Alegre. No local foram presos seis homens, alguns dos quais pesavam a droga. A juíza plantonista, depois de escrever no despacho que “foram observados os direitos constitucionais penais e processuais penais dos flagrados satisfatoriamente", ainda transformou o flagrante em prisão preventiva, pois – segundo a meritíssima – “restou abalada a ordem pública pelos indícios de tráfico de drogas e associação para o tráfico, transitando para além da mera tipicidade dos fatos imputados".
Mas, vinte e quatro horas depois, no capítulo seguinte, mudou o enredo da novela. A juíza deve ter pensado e repensado, decerto perdeu horas de sono, se revirou na cama, contou carneirinhos e resolveu resgatar a paz de sua alma. Decidiu realizar “audiência de custódia”. Não prevista na legislação brasileira, é uma encenação de inocência entre lágrimas e ranhos, que dá as costas para a sociedade e favorece delinquentes. Parida pela filosofia do coitadismo no Pacto de San José da Costa Rica, a tal de audiência gera a seguinte regra: se apanhou não vai preso.  
De modo que, no dia seguinte, lá estavam, na frente da juíza, “os flagrados satisfatoriamente”. Eles mesmos, aqueles que tinham abalado a “ordem pública pelos indícios de tráfico de drogas e associação para o tráfico”, um dia antes. Então, assumiram ares de coitadinhos e desfilaram perante a juíza. Um tinha levado tijoladas nas costas e no pescoço. Outro tinha sido “obrigado a dar informações sobre o fato”. Um terceiro teria levado chutes na barriga, nas costas, nos joelhos e nas pernas... Mas, ninguém se queixou de chute nos bagos, para não ter que exibir diante da juíza um pinto daquele tamanhinho.
O que realmente impressionou a magistrada foi a camisa de um deles “com manchas aparentemente de sangue”. Então, nada feito. Ficou o dito pelo não dito. A juíza revogou o próprio despacho. Que ordem pública, que nada! Abalada ficou ela, a meritíssima, que deve ter tido seu coração desmanchado pelas lágrimas que o inundaram. Liberou os cidadãos, em nome dos direitos humanos.
De certo, convencida de que tem poderes para refundar a vida dos criminosos, trocando a lei pelo enternecimento, substituiu as grades da prisão por piedosas recomendações de preceptora aos meninos: compromisso de apresentação mensal em juízo para informar e justificar suas atividades; proibição de se ausentar da comarca de Porto Alegre, sem autorização desse juízo, a não ser que conte com autorização judicial; não se envolver em novos crimes; recolher-se das 20h às 6h, sob pena de revogação da liberdade provisória. Só faltou a obrigação de comparecer à missa das sete.
Pelo visto, os tentáculos do tráfico de drogas, que viciam, corrompem, roubam, ferem e matam, têm também o poder incomensurável de transformar delinquentes em monges. Mas deles não se beneficiam os trabalhadores que moram na periferia. Esses são esfolados no transporte público entre sua casa e o trabalho. Saem pela madrugada e voltam à noite. Não lhes é concedido o privilégio de um longo descanso, entre as 20h e as 6h.





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