quinta-feira, 22 de abril de 2021

 

MONÓLOGO DE SUA EXCELÊNCIA

Ah, se não fosse o povo, nossa vida seria bem melhor. Mas, o povo, essa massa miúda, amorfa, cheia de vícios, que infesta todos os espaços públicos, complica o mundo. Em qualquer parte lá está ele, enchendo as ruas, fazendo filas. É fila para arranjar emprego, para entregar currículo; nos postos de saúde, nos ambulatórios do Sus. Filas nos bancos, nos correios, nos buffets de comida a quilo. E até no aeroporto o povo faz fila. Povo em aeroporto, para quê? Lugar de povo é na rodoviária, ou nos engarrafamentos, esses suplícios que ele mesmo provoca, aproveitando feriadões na praia ou na serra.

Verdade, no aeroporto nós temos preferência. Não precisaríamos nos misturar ao povo. Mas, não adianta. Vamos ao café, lá está o povo: fazendo fila para tirar ficha, fazendo fila para receber o pedido, fazendo fila para pagar. E na sala de embarque lá está o povo, outra vez. E mais uma vez, fazendo fila: fila para o banheiro.

Chamados a tomar assento, pela preferência que temos, na primeira classe, o povo nos lança um olhar de esguelha, mas alimentado pelo ar de desprezo, que sempre acompanha a inveja. Somos medidos de alto a baixo, enquanto nos dirigimos para a porta de embarque, sentindo a força daquele olhar maldoso. De certo procuram em nós o que é que nos torna diferentes, o que nos faz objetos de mesuras e reverências.  Só falta nos rogarem praga para que o avião caia. Mas, não fazem isso, porque cairão juntos.

Embarcamos sem o acompanhamento do povo, tranquilamente. Mas, pouco depois de acomodados, se esgota nosso saldo de alívio. Liberado o cubículo da classe econômica, aquela gente passa a agir como se estivesse num ônibus de subúrbio: entopem o corredor com suas bagagens, brigam por causa de assentos errados. Acabam transformando o corredor em palco de confusão de vira-latas.

Ah, o povo, esse poço de insatisfação, que cheira mal e se comporta de maus modos, acha que nós estamos errados, que causamos mal à pátria! Não nos respeita, não aceita nossas decisões, nos invectiva como autoritários, arrogantes. Nem as iguarias, com as quais nos regalamos, escapam às suas críticas selvagens. Esquece que não somos pessoas, mas o poder, a autoridade suprema, a quem compete decidir sobre destinos, conveniências e inconveniências.

Incomoda-o a deflagração deslumbrante da nossa sabedoria. Imagine-se como agiria se soubesse o que fazemos, para que não apareça o lado oculto da verdade. Mas, para a verdade preparamos ciladas sábias e, para manter o seu lado oculto, empregamos engenho e arte com adjetivos, advérbios e lições dos grandes mestres. Assim, evitamos que a casa caia.

Mas não nos incomoda o veneno do mau olhado. A inveja não nos tira o sossego, não nos provoca noites de pesadelos, insônias e calafrios. Pouco se nos dá a lei. Sobre o voto dos eleitores sacudimos o pó de nossos sapatos. Dormimos o sono que só aos deuses é devido, porque em nós corre a seiva do poder e da sabedoria.


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