MONÓLOGO DE SUA EXCELÊNCIA
Ah, se não fosse o povo, nossa vida seria bem melhor. Mas,
o povo, essa massa miúda, amorfa, cheia de vícios, que infesta todos os espaços
públicos, complica o mundo. Em qualquer parte lá está ele, enchendo as ruas,
fazendo filas. É fila para arranjar emprego, para entregar currículo; nos
postos de saúde, nos ambulatórios do Sus. Filas nos bancos, nos correios, nos
buffets de comida a quilo. E até no aeroporto o povo faz fila. Povo em
aeroporto, para quê? Lugar de povo é na rodoviária, ou nos engarrafamentos,
esses suplícios que ele mesmo provoca, aproveitando feriadões na praia ou na
serra.
Verdade, no aeroporto nós temos preferência. Não precisaríamos
nos misturar ao povo. Mas, não adianta. Vamos ao café, lá está o povo: fazendo
fila para tirar ficha, fazendo fila para receber o pedido, fazendo fila para
pagar. E na sala de embarque lá está o povo, outra vez. E mais uma vez, fazendo
fila: fila para o banheiro.
Chamados a tomar assento, pela preferência que temos, na
primeira classe, o povo nos lança um olhar de esguelha, mas alimentado pelo ar
de desprezo, que sempre acompanha a inveja. Somos medidos de alto a baixo,
enquanto nos dirigimos para a porta de embarque, sentindo a força daquele olhar
maldoso. De certo procuram em nós o que é que nos torna diferentes, o que nos
faz objetos de mesuras e reverências. Só
falta nos rogarem praga para que o avião caia. Mas, não fazem isso, porque
cairão juntos.
Embarcamos sem o acompanhamento do povo, tranquilamente.
Mas, pouco depois de acomodados, se esgota nosso saldo de alívio. Liberado o
cubículo da classe econômica, aquela gente passa a agir como se estivesse num
ônibus de subúrbio: entopem o corredor com suas bagagens, brigam por causa de
assentos errados. Acabam transformando o corredor em palco de confusão de
vira-latas.
Ah, o povo, esse poço de insatisfação, que cheira mal e se
comporta de maus modos, acha que nós estamos errados, que causamos mal à pátria!
Não nos respeita, não aceita nossas decisões, nos invectiva como autoritários,
arrogantes. Nem as iguarias, com as quais nos regalamos, escapam às suas
críticas selvagens. Esquece que não somos pessoas, mas o poder, a autoridade
suprema, a quem compete decidir sobre destinos, conveniências e
inconveniências.
Incomoda-o a deflagração deslumbrante da nossa sabedoria.
Imagine-se como agiria se soubesse o que fazemos, para que não apareça o lado
oculto da verdade. Mas, para a verdade preparamos ciladas sábias e, para manter
o seu lado oculto, empregamos engenho e arte com adjetivos, advérbios e lições
dos grandes mestres. Assim, evitamos que a casa caia.
Mas não nos incomoda o veneno do mau olhado. A inveja não
nos tira o sossego, não nos provoca noites de pesadelos, insônias e calafrios. Pouco
se nos dá a lei. Sobre o voto dos eleitores sacudimos o pó de nossos sapatos. Dormimos
o sono que só aos deuses é devido, porque em nós corre a seiva do poder e da
sabedoria.
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