terça-feira, 27 de janeiro de 2009

PRA QUEM AINDA ACREDITA EM CEGONHA, ETC.

Depósito judicial e prisão civil do depositário infiel: análise do julgamento do RE 466343/SP[1]

Elpídio Donizetti

Resumo: Este trabalho pretende analisar, criticamente, o recente julgamento do STF acerca da inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel e, ao mesmo tempo, traçar, com base na orientação dessa Corte, as balizas que deverão nortear a conduta dos magistrados, advogados e credores quando constatada a infidelidade do depositário judicial.

Palavras-chaves: Depositário judicial infiel. Constitucionalidade.

Sumário: 1 Introdução. 2 Da (in)constitucionalidade da prisão civil do depositário judicial infiel. 3 Conclusão: breve roteiro a ser seguido quando constada a infidelidade do depositário judicial.

1 Introdução
Questão que sempre gerou polêmica na doutrina e principalmente na jurisprudência pátria é a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal parece ter pacificado a questão. Trata-se do julgamento do RE 466343/SP, finalizado em 03/12/2008.
Ao longo desta exposição, faremos uma análise crítica acerca desse julgado e proporemos um roteiro que, a partir da decisão do STF, deverá balizar a conduta dos juízes, advogados e credores quando constatada a infidelidade do depositário judicial e mesmo antes da nomeação do depositário, com vistas a evitar a infidelidade.

2 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL.

O art. 5º, LXVII, da CF/88 admite a prisão civil em duas hipóteses: a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.
Ocorre que o Brasil, por via do Decreto 678/1992, rati­fi­cou, em 25/09/1992, o Pacto de São José da Costa Rica, com iní­cio de vigên­cia no ter­ri­tó­rio nacio­nal em 06/11/1992, o qual admite a prisão por dívidas apenas do devedor inescusável de alimentos (art. 7º).
A diver­gên­cia entre o dis­pos­to no Pacto São da Costa Rica e o art. 5º, LXVII, da CF/88, acir­rou a dis­cus­são acer­ca de qual seria a hie­rar­quia das nor­mas inter­na­cio­nais quan­do inte­gra­das ao orde­na­men­to jurí­di­co inter­no – se assu­mi­riam sta­tus de nor­mas cons­ti­tu­cio­nais ou infra­cons­ti­tu­cio­nais – e, via de consequência, se ainda permanecia válida a prisão civil do depositário infiel.
Com o julgamento do RE 466343/SP, finalizado em 03/12/2008, o STF parece ter pacificado a questão.
Inicialmente, deve-se observar que o objeto do mencionado recurso extraordinário era a constitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária, que se equipararia à figura do depósito contratual. Não obstante, a decisão proferida repercute em todas as espécies de depósito.
Segundo o Min. Gilmar Mendes, os tra­ta­dos e con­ven­ções inter­na­cio­nais sobre direi­tos huma­nos inte­gra­dos ao orde­na­men­to jurí­di­co inter­no sem o quorum qualificado do §3º do art. 5º da CF ­teriam cará­ter supra­le­gal, ou seja, não alte­ra­riam o texto cons­ti­tu­cio­nal, mas se sobre­po­riam às nor­mas infra­cons­ti­tu­cio­nais. Dessa forma, a subscrição pelo Brasil dos tratados internacionais sobre direitos humanos torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. É o que teria ocorrido com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-lei nº 911/69, assim como em rela­ção ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
A manifestação do Min. Gilmar Mendes foi acompanhada pelos ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito.
Os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie, por sua vez, reconheceram não a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, em especial o Pacto São José da Costa Rica, mas o status constitucional de tais normas[2][1].
Quer tenha status constitucional, quer tenha status supralegal, o fato é que, com base no novo entendimento do STF, não mais há substrato legal para se decretar a prisão civil do depositário infiel – quer seja contratual ou judicial o depósito.
Como desdobramento do entendimento acima esposado, a Suprema Corte deliberou pela revogação da Súmula 619, que admitia o decreto da prisão civil do depositário judicial infiel no mesmo processo em que constituído o encargo[3][2].
Com relação à prisão civil decorrente do depósito contratual típico ou da alienação fiduciária, não há qualquer discussão. Em se entendendo que o Pacto São José da Costa Rica só admite prisão civil por dívida no caso de inadimplemento de prestação alimentícia, e que o tratado se sobrepõe à legislação infraconstitucional – e isso ficou assentado no julgamento do STF –, de fato não mais há amparo legal para a prisão decorrente de relação material de cunho privado.
No entanto, com relação aos depósitos judiciais, a tese perfilhada pela Suprema Corte brasileira não nos parece a mais adequada.
A bem da verdade, a recente decisão do STF está na contramão da linha adotada pela última onda reformadora do Código de Processo Civil, cujo escopo foi conferir maior celeridade e efetividade ao procedimento executivo e, para tanto, previu medidas coercitivas até para condutas antes reputadas legítimas, como, por exemplo, para o caso de o executado sonegar bens sujeitos à execução (arts. 652, §3º, 656, §1º, c/c art. 14, parágrafo único, do CPC). Ora, a possibilidade de se aplicar pena de prisão constitui importante instrumento para se coibir a má-fé daqueles depositários que, maliciosamente, poderiam se desfazer de bens constritos, retardando ou até inviabilizando, com isso, a satisfação do crédito.
Mas não é só. A meu juízo, os eminentes ministros laboraram em equívoco na exegese do art. 7º da Carta de São José da Costa Rica, que, conforme já afirmado, veda a prisão “por dívidas”, ou seja, por débito inadimplido, exceto a resultante de alimentos. Entretanto, nem de longe o depósito judicial pode ser tido como “dívida”.
Ao contrário do depósito contratual ou equiparado, o depósito judicial é relação típica de direito público e de caráter processual, estabelecida entre o juízo da execução e o depositário judicial dos bens penhorados. Nessa modalidade de depósito, o juiz confia ao depositário – que necessariamente não há que coincidir com a pessoa do devedor, portanto, às vezes, sequer no plano subjacente se pode falar em débito – a guarda dos bens apreendidos em decorrência de penhora, sequestro, arresto ou outro ato judicial constritivo, com intuito de preservá-los, a fim de assegurar a efetividade do processo.
Diversamente do que ocorre no depósito contratual, inclusive o decorrente de alienação fiduciária, assume o depositário judicial, na qualidade de auxiliar do juízo, um munus público, e é exatamente esse vínculo funcional existente entre juízo e depositário que, desde priscas eras, tem justificado o decreto de prisão, constada a infidelidade desse “servidor público por equiparação”.
Repise-se, porquanto nisso reside o ponto fulcral desta breve análise, o art. 7º do Pacto de São José de Costa Rica veda, tão-somente, a prisão de devedor, ou seja, daquele que tem débito decorrente de relação material (de regra, contratual), o qual em nada se confunde com a figura do depositário judicial, que, em virtude da assinatura do termo de depósito, não assumiu qualquer dívida, mas o munus de conservar e restituir a coisa, sob pena de infidelidade e, consequentemente, de prisão.
Aliás, o disposto no tratado internacional não impede sequer que o depositário judicial infiel responda penalmente pelo crime de peculato, tipificado no art. 312 do Código Penal[4][3], uma vez que, para efeitos penais, considera-se funcionário público quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça função pública (art. 327).
Destarte, por originar-se de indevido exercício de munus público, e não de relação contratual, a hipótese de prisão civil do depositário judicial infiel regulamentada pelo art. 666, §3º do CPC não foi derrogada pelo Pacto São José da Costa Rica.
Dessa forma, a orientação adotada no RE 466343/SP não pode prevalecer com relação aos depósitos judiciais, sendo constitucional a decretação da prisão civil do depositário judicial infiel, permanecendo, a nosso ver, válido o teor da Súmula 619 do STF[5][4].

3 CONCLUSÃO: BREVE ROTEIRO A SER SEGUIDO QUANDO CONSTATADA A INFIDELIDADE DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL

Em que pesem as críticas apresentadas, sabemos todos nós que a lei é aquilo que os tribunais – em especial o STF – dizem que o é. E o STF entendeu que, no Brasil, só cabe prisão civil decorrente do não-pagamento de pensão alimentícia. Assim, ao menos por enquanto, ao que tudo indica, Inês é morta. Nos autos do processo civil, não há possibilidade de decretar a prisão do depositário judicial infiel. Nada impede evidentemente que amanhã o Supremo ressuscite e reveja o entendimento assentado. Aliás, entre outras, essa permanente possibilidade de revisão dos precedentes é que nos motiva a tecer críticas, construtivas e respeitosas, às decisões da mais alta Corte de Justiça deste país.
À guisa de conclusão é de se indagar: e então, nós que estamos perto dos fatos e que, por isso mesmo, enxergamos e sentimos os reflexos da má-fé de alguns depositários judiciais, o que devemos fazer diante da inexorabilidade do mencionado precedente? Qual seria, então, a postura a ser adotada pelos credores, advogados, juízes e promotores de justiça quando constatada a infidelidade do depositário judicial?
Adianto que a despeito da extensão que o STF emprestou à vedação da prisão por dívidas, os depositários judiciais não estão à vontade para dissiparem bens cuja guarda foi-lhes confiada.
Ante o sumiço do bem depositado, e impossível o decreto prisional, que, como num passe de mágica, comumente tinha o condão de fazê-lo aparecer, caberá ao credor, se houver interesse, optar por indicar outro bem do devedor à constrição ou prosseguir nos próprios autos contra o depositário infiel, a fim de obter dele indenização pelo valor equivalente ao bem antes constrito. Em qualquer das hipóteses, deverá o juiz remeter cópia de peças dos autos ao Ministério Público, para oferecimento de denúncia contra o depositário infiel, por peculato. É a forma de remediar, de correr atrás do prejuízo.
Antes, porém, que o leite derrame, com a nova orientação do STF, redobrada deve ser a atenção dos juízes ao nomearem os depositários. Mais do que nunca, será imprescindível a prévia certificação da idoneidade financeira do depositário, possibilitando o contraditório principalmente pelo credor, que poderá se opor à nomeação. Dificilmente o bem ficará com o devedor, a menos que preste caução. Isso porque, como não pagou a dívida reconhecida no título executivo, a presunção – relativa, evidentemente – é de que não goza de idoneidade financeira.
O tiro, portanto, acaba por sair pela culatra. Aparentemente a decisão no RE 466343/SP beneficia o devedor, mas, na prática, irá prejudicá-lo, porquanto, a não ser excepcionalmente, ficará na guarda do bem apreendido. O mais prejudicado, todavia, é o credor, que verá postergada, quiçá inviabilizada, a satisfação de seu crédito.

[1] Transcrito do Boletim da Anamages
[2][1] Conferir, a respeito, o Informativo de Jurisprudência nº 498 do STF.
[3][2] Súmula 619: A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito.
[4][3] Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
[5][4] Embora tenha defendido a supralegalidade do Pacto São José da Costa Rica, o Min. Menezes Direito ressalvou seu particular entendimento no sentido de que a vedação da prisão civil não se estenderia ao depositário judicial infiel. A respeito, conferir o Informativo de Jurisprudência nº 531 do STF.

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