A SOPA QUE CONSERTA O MUNDO
Mariléia
Sell
Há quem
vá arrumar gavetas. Outras caminham. Eu cozinho sopa. Não importa se é inverno
ou verão, quando preciso organizar meus pensamentos e consertar o mundo, o meu
mundo, lanço-me a picar legumes. Eu poderia acabar com a fome do planeta nesses
dias. Mas falta-me uma panela maior!
Minhas
sopas agora são sem veneno; arrumei um fornecedor de alimentos orgânicos. As
cenouras e os tomates são mais honestos; não fazem promessas que não podem
cumprir. Não ostentam aquela arrogância lustrosa e gigante. Já o chuchu
continua o mesmo de sempre; com ou sem veneno é sem graça. Posso até ver minha
mãe partindo em defesa do legume. Para ela, o chuchu é mal compreendido: “é
porque tu nunca provou a sobremesa de chuchu com melado”.
As batatas sem veneno
são miúdas e cheias de pontos pretos, mais difícieis de descascar. Levando o
conceito de economia a extremos e sempre administrando a pobreza lá de casa,
minha mãe fiscalizava a espessura das cascas que iam para a lavagem dos porcos.
Eu quase partia os dedos tentando corresponder às expectativas maternas. Hoje,
não consigo deixar de sentir uma satisfação interna ao ver as cascas dos meus
legumes quase transparentes. É a satisfação de não desapontar a minha mãe:
“mãe, eu consegui, tornei-me uma descascadora competente”. Preciso,
porém, fazer uma ressalva para a moranga; essa é impossível de descascar
aplicando os princípios da minha mãe. As cascas ficam vergonhosamente grossas!
Com o
aipim me reconciliei tardiamente na vida. Na infância, éramos obrigados a
comer, quer quiséssemos ou não. “Quando vocês levantarem a tampa da panela de
vocês, aí vocês escolhem a comida”, dizia o meu pai, pragmático e com
preocupações mais urgentes do que o nosso paladar infantil. Confesso que nutria
um ódio secreto pelo aipim e quando comecei a levantar as tampas das minhas
próprias panelas, foi o primeiro a ser banido da cozinha. Depois de anos
levando o aipim para o divã, resolvi dar uma segunda chance a ele, e ao meu
pai.
Minha
relação com a batata doce também passou por um longo recesso. Eu e meus irmãos
comíamos o tubérculo até no café da manhã, com schmier (dou um prato de sopa
para quem adivinhar o ingrediente principal da geleia!). Levávamos a batata de
lanche para a escola, comíamos no almoço e quando mais fosse necessário para
complementar a dieta. Mas não há adversidades suficientes para limitar a
criatividade materna: levávamos também pão com ovo frito e, nos tempos de muita
opulência, pão com bife.
A nossa
mãe assava as batatas no forno, depois de tirar as fornadas de pães. O mundo
todo recendia a batata. Talvez por essa identificação com a batata, sempre
acatamos, resignados, quando nos chamavam de “alemão batata”. Enjoei
terrivelmente da batata doce. Ultimamente, porém, tenho dado passos importantes
para a nossa reaproximação. Descobri que ela é indispensável na dieta de quem
faz atividade física. Quem diria! Minha velha conhecida é admirada no mundo
fitness! Redimi a batata.
Recentemente,
experimentei colocar uma prima da batata na sopa. Tenho uma relação afetiva de
tempos primevos com o cará. Minha bisavó fazia pão de cará e contava histórias,
histórias sobre a eternidade, sobre o céu e sobre o inferno. A
eternidade, dizia ela, equivale ao tempo que um pássaro leva para bicar uma
rocha inteirinha. O detalhe é que o pássaro vem a cada cem anos dar uma bicadinha
de nada. Esse era o tempo que ficaríamos no inferno, se fossemos mal
comportados. Até hoje o tempo para ficar no inferno me parece exagerado! Mas,
voltando ao cará, não adianta, cada um tem uma vocação na vida e a do cará não
é para estar na sopa. Sua textura fica melhor no pão, no pão da minha bisavó.
A sopa
está pronta. O cheiro está promissor. Sento-me e chamo toda a família, os daqui
e os do outro mundo. É tempo de reconciliação. É tempo de juntar tudo em um
caldo reconfortante. Pai, tem até aipim na minha panela!
Mariléia
Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisi