Mariléia Sell
Em junho, durante os jogos da copa do mundo, um grupo de machos brasileiros, entre eles um advogado, um tenente e um engenheiro, achou por bem dar uma animada na sempre tão fria Rússia brincando com uma nativa. Foi uma brincadeira porque a russa aderiu, de livre e espontânea vontade, como explicou um dos integrantes do grupo de verde e amarelo. Ela foi cercada pelo grupo de torcedores que a incentivou a repetir “boceta rosa’ sem que ninguém a forçasse a isso. E para que não reste nenhuma dúvida de que foi realmente uma inocente brincadeira, o grupo postou o evento nas redes sociais. Se fosse algo condenável, ninguém postaria, não é mesmo? Se fosse algo que ferisse outra pessoa, minimamente todos fariam isso às escondidas, afinal de contas, quem não está atento às possibilidades de receber julgamentos negativos? Quem gosta de passar vergonha? É tudo tão óbvio, mas o povo tem mania de fazer tempestade em copo d´água, todos estão sempre ávidos por destruir a reputação de pais de família e trabalhadores. Coisa feia!
Ainda em junho, dias depois de o Brasil ser o epicentro de debates sobre machismo, tivemos outro evento (sim, o Brasil é um celeiro de eventos dessa ordem), que nada mais foi do que uma simples e rotineira entrevista com a deputada estadual e pré-candidata à presidência, Manuela D´ávila, à moda do bem-conceituado e isento jornalismo brasileiro. Entrevistas são eventos sociais em que é normal homens e mulheres serem interrompidos a toda hora, como esclarece uma das entrevistadoras, a jornalista Vera Magalhães, do Jornal O Estado de São Paulo. Vera vai mais longe, ela diz que já entrevistou vários homens e que todos foram interrompidos, mas que diante de uma mulher, no caso Manuela, a interrupção virou ‘manterrupting’. Além de desconhecer um princípio básico da interação, que diz que cada falante fala por vez e que interrupções devem ser logo resolvidas, a jornalista parece achar normal que a entrevistada (a que todos querem, supostamente, ouvir) não consiga sequer concluir uma ideia. Isso, para dizer pouco, passa muito longe de jornalismo sério. Além disso, para a jornalista agora tudo é machismo. Não se pode falar mais alto com uma mulher, não se pode interromper, não se pode nem fazer brincadeiras. É natural que os homens estejam meio perdidos. O que, afinal de contas, ainda é permitido?
Manuela D´ávila foi entrevistada por um grupo de jornalistas, no Programa Roda Viva, e a condução gerou inúmeras polêmicas porque a pré-candidata à presidência foi interrompida 62 vezes (em um programa com duração de 70 minutos) e um dos entrevistadores, Frederico d´Ávila, coordenador da campanha do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), foi especialmente ‘assertivo’. Assertividade, como sabemos, é uma qualidade dos homens. As mulheres costumam ser menos assertivas, são mais inseguras, não conseguem terminar uma linha de raciocínio e ainda pedem a confirmação do interlocutor sobre a validade de suas ideias. Em um programa de entrevistas, o que conta são os argumentos, nada mais do que isso. Se a deputada não tinha argumentos para discutir a castração química, o comunismo e os rumos do Brasil, ela que não fosse ao programa. Aliás, não fosse por Frederico d´Ávila não saberíamos que a cultura de estupro sequer existe.
Afinal, o que esses dois episódios têm em comum, além de demonstrações explícitas e vergonhosas de machismo e misoginia? Os dois eventos evidenciam o papel da língua nas relações de gênero. É pela língua que realizamos todas as ações no mundo. É também pela língua que nos constituímos como sujeitos no mundo, mais especificamente pela língua do outro, que nos devolve a imagem de nós mesmos, como uma espécie de espelho. Ora, se a devolução dessa imagem do outro (o grande Outro, de Freud) é de aniquilamento (seja pela interrupção violenta ou pela redução da pessoa à sua genitália), significa que o outro não reconhece a nossa humanidade. Não bastasse a doença do machismo que nega reiteradamente a face das mulheres (no caso da mulher russa e de Manuela, mas também de todas as mulheres do mundo no dia-a-dia), preocupa ainda mais a própria negação da doença em si. Quanto maior o desconhecimento, mais distante a cura.
Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos
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