terça-feira, 3 de julho de 2018

UM TRATADO LINGUÍSTICO DA FALA DOS MACHOS 
 Mariléia Sell 

Em junho, durante os jogos da copa do mundo, um grupo de machos brasileiros, entre eles um advogado, um tenente e um engenheiro, achou por bem dar uma animada na sempre tão fria Rússia brincando com uma nativa. Foi uma brincadeira porque a russa aderiu, de livre e espontânea vontade, como explicou um dos integrantes do grupo de verde e amarelo. Ela foi cercada pelo grupo de torcedores que a incentivou a repetir “boceta rosa’ sem que ninguém a forçasse a isso. E para que não reste nenhuma dúvida de que foi realmente uma inocente brincadeira, o grupo postou o evento nas redes sociais. Se fosse algo condenável, ninguém postaria, não é mesmo? Se fosse algo que ferisse outra pessoa, minimamente todos fariam isso às escondidas, afinal de contas, quem não está atento às possibilidades de receber julgamentos negativos? Quem gosta de passar vergonha? É tudo tão óbvio, mas o povo tem mania de fazer tempestade em copo d´água, todos estão sempre ávidos por destruir a reputação de pais de família e trabalhadores. Coisa feia! 

Ainda em junho, dias depois de o Brasil ser o epicentro de debates sobre machismo, tivemos outro evento (sim, o Brasil é um celeiro de eventos dessa ordem), que nada mais foi do que uma simples e rotineira entrevista com a deputada estadual e pré-candidata à presidência, Manuela D´ávila, à moda do bem-conceituado e isento jornalismo brasileiro. Entrevistas são eventos sociais em que é normal homens e mulheres serem interrompidos a toda hora, como esclarece uma das entrevistadoras, a jornalista Vera Magalhães, do Jornal O Estado de São Paulo. Vera vai mais longe, ela diz que já entrevistou vários homens e que todos foram interrompidos, mas que diante de uma mulher, no caso Manuela, a interrupção virou ‘manterrupting’. Além de desconhecer um princípio básico da interação, que diz que cada falante fala por vez e que interrupções devem ser logo resolvidas, a jornalista parece achar normal que a entrevistada (a que todos querem, supostamente, ouvir) não consiga sequer concluir uma ideia. Isso, para dizer pouco, passa muito longe de jornalismo sério. Além disso, para a jornalista agora tudo é machismo. Não se pode falar mais alto com uma mulher, não se pode interromper, não se pode nem fazer brincadeiras. É natural que os homens estejam meio perdidos. O que, afinal de contas, ainda é permitido? 

Manuela D´ávila foi entrevistada por um grupo de jornalistas, no Programa Roda Viva, e a condução gerou inúmeras polêmicas porque a pré-candidata à presidência foi interrompida 62 vezes (em um programa com duração de 70 minutos) e um dos entrevistadores, Frederico d´Ávila, coordenador da campanha do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), foi especialmente ‘assertivo’. Assertividade, como sabemos, é uma qualidade dos homens. As mulheres costumam ser menos assertivas, são mais inseguras, não conseguem terminar uma linha de raciocínio e ainda pedem a confirmação do interlocutor sobre a validade de suas ideias. Em um programa de entrevistas, o que conta são os argumentos, nada mais do que isso. Se a deputada não tinha argumentos para discutir a castração química, o comunismo e os rumos do Brasil, ela que não fosse ao programa. Aliás, não fosse por Frederico d´Ávila não saberíamos que a cultura de estupro sequer existe.
 Afinal, o que esses dois episódios têm em comum, além de demonstrações explícitas e vergonhosas de machismo e misoginia? Os dois eventos evidenciam o papel da língua nas relações de gênero. É pela língua que realizamos todas as ações no mundo. É também pela língua que nos constituímos como sujeitos no mundo, mais especificamente pela língua do outro, que nos devolve a imagem de nós mesmos, como uma espécie de espelho. Ora, se a devolução dessa imagem do outro (o grande Outro, de Freud) é de aniquilamento (seja pela interrupção violenta ou pela redução da pessoa à sua genitália), significa que o outro não reconhece a nossa humanidade. Não bastasse a doença do machismo que nega reiteradamente a face das mulheres (no caso da mulher russa e de Manuela, mas também de todas as mulheres do mundo no dia-a-dia), preocupa ainda mais a própria negação da doença em si. Quanto maior o desconhecimento, mais distante a cura.

 Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos

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