ASSIM
FALOU EVERALDO
Mariléia
Sell
Seriam
quase quatro horas até Restinga Sêca. Outras quatro para retornar a Novo
Hamburgo. No meu kit de viagem estava O Conto da Aia, dois artigos sobre gênero
e sexualidade e fones de ouvido. Eu era uma criança numa despensa de doces:
como gastaria essas oito horas? Mas Everaldo queria conversar. Conversamos,
então. “Importa-se com música”? Não me importo.
Ao som
da sua melhor coletânea de Amado Batista e Odair José, o motorista me explicou
que passa a maior parte da vida no carro e que tem o melhor emprego do mundo.
“Que trabalho te paga para ficar passeando”? É impossível rejeitar a lucidez do
seu argumento. Concordo. Eu mesma sempre quis um trabalho que me pusesse na
estrada. Ele me explicou que faz muitas horas extras, “não pelo dinheiro, não
preciso de muito”. Everaldo só precisa o suficiente para viver e para dar as
coisas para o filho. Gosta mesmo é de ser útil. Se tem luxos? Gosta de carros e
está reformando um opala antigo: “uma verdadeira jóia”.
Everaldo
foi casado durante 26 anos, confidenciou-me. Separou-se recentemente. “Com o
tempo, a gente vê que nada dura para sempre”. Agora, ele não quer mais nada
sério com ninguém: “casar é do tipo de coisa que só se faz uma vez na vida”. Do
pen drive de Everaldo, Amado Batista chora o seu ex amor. Mas que ninguém se
engane com Everaldo. Ele não está fechado para o amor; em absoluto. Tem até uma
namorada, “bem linda”, com a diferença que agora não faz mais planos: “nada que
seja para além de um mês”. Eu tive um amor. Amor tão bonito. Daqueles
que matam.
O que
restou dos 26 anos de casamento coube no porta malas do carro: “por isso não
vale a pena acumular nada; hoje só tenho o que posso carregar”. Ao invés de
construir outra casa, Everaldo decidiu agora investir em prazeres mais fugazes.
“Tu já conhece Gramado, né”? Cadê você? Que nunca mais apareceu aqui.
Que não voltou pra me fazer sorrir?
Todo
mundo, de forma mais ou menos consciente, um dia já se perguntou sobre o
sentido da vida. Com Everaldo não é diferente. Porém, pouco inclinado a
chafurdar nas incertezas existenciais, resolve a questão de forma pragmática:
“eu vivo pelo meu filho; todos dizem que quando adotamos o Gabriel nós o
salvamos, mas foi ele que nos salvou”. Chega um ponto na vida, explica, que a
gente já viveu tudo, já casou, já descasou, já trabalhou muito, já construiu
casa, já saiu dessa casa, já acumulou doenças, já perdeu as ilusões e aí bate
um certo vazio. “Se não é o Gabriel, nada tem graça”.
Odair
José continua lamentando-se no rádio de Everaldo: Não se vá, eu já não
posso suportar essa minha vida de amargura. Não se vá. Com o sol mais
lindo e mais vermelho afundando no horizonte, ponho-me a refletir sobre a nossa
pobre condição humana. Corremos muito, trabalhamos demais, queremos
estabilidade, desejamos solidez. Perseguimos o controle, ansiamos por
garantias, queremos que as coisas durem a idade de um camelo até que, cansados,
finalmente abraçamos a inconstância da vida. De repente, meu pensamento afunda
e não consigo levar as minhas considerações adiante. Uma mulher acabava de
morrer em uma sala de cirurgia, jovem e grávida, sem tempo de se despedir de
seu amado. Não teve tempo, ao que parece, de abraçar as suas contradições e
reconciliar-se com a vida. Amor perfeito. Existia entre nós dois. Sem
esperar que depois. Fosse tudo se acabar.
Mariléia
Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Un
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