O
OLHO DE CATHARINA
Mariléia Sell
Ela
se comportava como se estivesse diante de uma plateia de mães. Só as mães
entenderiam a severidade do seu castigo. Muitas mães, algumas até conhecidas,
que compartilhavam entre si a tragédia do exílio, já haviam, assim como ela, recebido
a maior punição de todas: a desgraça de enterrarem seus próprios filhos.
Catharina chegava ao terceiro ciclo de sua jornada. Às vezes aterrorizada de
constatar, de repente, um rosto tão familiar, o rosto do seu filho crescido,
brotar de um amontoado de flores amassadas, dentro de um caixão de verdade; às
vezes plácida, trazendo no rosto a obediência heroica de quem se curva ao
sacrifício cobrado às mães de boa vontade.
Catharina afagava o rosto
duro e frio do seu filho, num misto de ternura e de loucura. Beijava-o,
arrancando-o do caixão e embalando-o como só as mães sabem embalar. Acomodava o
corpo grande em seus braços pequenos e murchos, de mulher idosa. Enterrar três
filhos é demais para qualquer mãe, preferia estar morta a perceber-se merecedora
do exagero de castigos tão exasperados. Ainda hoje sentia os peitos inchados do
leite que João e Maria não tiveram energia para sugar, do leite que empedrara e
que lhe causara febres horríveis. Seus filhos morreram com fome! Se ficasse bem
quieta, conseguia ouvir o choro tísico dos bebês. Não era bem um choro, era
mais um gemido, o gemido de quem não tinha pulmões para berrar suas dores ao
mundo. Não houve tempo para que recebessem o sagrado sacramento do batismo, os
recém-nascidos, e as leis da igreja, naquele canto do mundo, eram muito claras
a esse respeito: os filhos ilegítimos de Deus não podiam gozar dos mesmos
direitos de ocupação do cemitério. Proscritos que eram, deviam ser enterrados
no canto mais distante e mais abandonado do jardim dos mortos. Inconformada, a
mãe passaria a vida toda lutando contra o mato que avançava agressivamente
sobre os túmulos dos seus bebês. Na tentativa de restituir-lhes a dignidade,
plantava flores. Plantava margaridas, suas favoritas. Ultimamente, levava
também bolachas; a ideia da fome eterna a aterrorizava.
Deus devia odiá-la muito,
Deus provavelmente odiava as mulheres! Soluçando, ela cantava para o filho
velhas canções dos imigrantes. Talvez ele estivesse apenas dormindo e
precisasse de algum descanso; afinal, o arado é um dos trabalhos mais
extenuantes que há nesta terra de exilados. Ajeitava, com rigor matemático, o
véu transparente que o cobria; talvez estivesse com frio. Que trouxessem uma
manta! Cada ponta era milimetricamente alinhada e as flores, indefinidamente
rearranjadas. As margaridas brancas eram de uma beleza tão despretensiosa que
Catharina as olhava com certo espanto, o espanto de alguém que vê algo pela
primeira vez. Depois, gritava desesperadamente para acordar o filho,
sacudindo-o violentamente. Já estava na hora de abrir os olhos, que parasse com
essa brincadeira sem graça. Os filhos, às vezes, pregam peças nos pais e nas
mães, só pelo prazer de ver as suas caras de susto. Então, rezava orações que
aprendera de seus pais, em um tempo remoto, em uma língua mestiça. Talvez
tivesse falhado no tamanho de sua fé e, por isso, Deus nunca esquecia de
castigá-la.
Não havia sermão e nem padre
que dessem conta da pungência da situação; partidas antecipadas sempre causam
inconformidade, uma revolta disfarçada mesmo. Claro que não convinha uma
afronta direta à vontade divina, mas sempre surgiam, entre a população,
inadvertidos sentimentos de rebelião contra a arbitrariedade das regras do
jogo. Livre para dizer, porque as mães que enterram seus filhos estão autorizadas
a dizer qualquer coisa, Catharina questionava abertamente a competência divina:
onde andava Deus numa hora dessas? Descabelava-se e, no meio da sua agitação,
parava, de repente, para declarar a quem quisesse ouvir, para horror do padre e
das almas mais tementes: “Deus não existe”.
Exausta na sua cadeira,
Catharina examinava, com olhos muito arregalados e muito azuis, a todos em
volta e depois olhava com espanto para o caixão. Revirava o seu rosto e buscava
nos olhos alheios alguma explicação: o que estava acontecendo? Os olhos de
Catharina perseguiriam o juízo de todos. Olhos que já viram demais e agora,
livres da prisão da lucidez, escancaravam a falta de sentido da vida. Quem
estava deitado ali, tão imóvel? Quem a trouxera para ali em horário que ainda deveria
estar na cama? Logo seria a hora do seu café com bolachas Maria. Que a levassem
para casa sem demora.
Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e
Comunicação da Unisinos
Nenhum comentário:
Postar um comentário