terça-feira, 31 de julho de 2018


A SOPA QUE CONSERTA O MUNDO
Mariléia Sell

Há quem vá arrumar gavetas. Outras caminham. Eu cozinho sopa. Não importa se é inverno ou verão, quando preciso organizar meus pensamentos e consertar o mundo, o meu mundo, lanço-me a picar legumes. Eu poderia acabar com a fome do planeta nesses dias. Mas falta-me uma panela maior!

Minhas sopas agora são sem veneno; arrumei um fornecedor de alimentos orgânicos. As cenouras e os tomates são mais honestos; não fazem promessas que não podem cumprir. Não ostentam aquela arrogância lustrosa e gigante. Já o chuchu continua o mesmo de sempre; com ou sem veneno é sem graça. Posso até ver minha mãe partindo em defesa do legume. Para ela, o chuchu é mal compreendido: “é porque tu nunca provou a sobremesa de chuchu com melado”. 

As batatas sem veneno são miúdas e cheias de pontos pretos, mais difícieis de descascar. Levando o conceito de economia a extremos e sempre administrando a pobreza lá de casa, minha mãe fiscalizava a espessura das cascas que iam para a lavagem dos porcos. Eu quase partia os dedos tentando corresponder às expectativas maternas. Hoje, não consigo deixar de sentir uma satisfação interna ao ver as cascas dos meus legumes quase transparentes. É a satisfação de não desapontar a minha mãe: “mãe, eu consegui, tornei-me uma  descascadora competente”. Preciso, porém, fazer uma ressalva para a moranga; essa é impossível de descascar aplicando os princípios da minha mãe. As cascas ficam vergonhosamente grossas!

Com o aipim me reconciliei tardiamente na vida. Na infância, éramos obrigados a comer, quer quiséssemos ou não. “Quando vocês levantarem a tampa da panela de vocês, aí vocês escolhem a comida”, dizia o meu pai, pragmático e com preocupações mais urgentes do que o nosso paladar infantil. Confesso que nutria um ódio secreto pelo aipim e quando comecei a levantar as tampas das minhas próprias panelas, foi o primeiro a ser banido da cozinha. Depois de anos levando o aipim para o divã, resolvi dar uma segunda chance a ele, e ao meu pai.

Minha relação com a batata doce também passou por um longo recesso. Eu e meus irmãos comíamos o tubérculo até no café da manhã, com schmier (dou um prato de sopa para quem adivinhar o ingrediente principal da geleia!). Levávamos a batata de lanche para a escola, comíamos no almoço e quando mais fosse necessário para complementar a dieta. Mas não há adversidades suficientes para limitar a criatividade materna: levávamos também pão com ovo frito e, nos tempos de muita opulência, pão com bife.

A nossa mãe assava as batatas no forno, depois de tirar as fornadas de pães. O mundo todo recendia a batata. Talvez por essa identificação com a batata, sempre acatamos, resignados, quando nos chamavam de “alemão batata”. Enjoei terrivelmente da batata doce. Ultimamente, porém, tenho dado passos importantes para a nossa reaproximação. Descobri que ela é indispensável na dieta de quem faz atividade física. Quem diria! Minha velha conhecida é admirada no mundo fitness! Redimi a batata.

Recentemente, experimentei colocar uma prima da batata na sopa. Tenho uma relação afetiva de tempos primevos com o cará. Minha bisavó fazia pão de cará e contava histórias, histórias sobre a eternidade, sobre o céu e sobre  o inferno. A eternidade, dizia ela, equivale ao tempo que um pássaro leva para bicar uma rocha inteirinha. O detalhe é que o pássaro vem a cada cem anos dar uma bicadinha de nada. Esse era o tempo que ficaríamos no inferno, se fossemos mal comportados. Até hoje o tempo para ficar no inferno me parece exagerado! Mas, voltando ao cará, não adianta, cada um tem uma vocação na vida e a do cará não é para estar na sopa. Sua textura fica melhor no pão, no pão da minha bisavó.

A sopa está pronta. O cheiro está promissor. Sento-me e chamo toda a família, os daqui e os do outro mundo. É tempo de reconciliação. É tempo de juntar tudo em um caldo reconfortante. Pai, tem até aipim na minha panela!

Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisi

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