HONORÁVEIS BANDIDOS: A ‘URNA DO ZÉ’
POR OSWALDO VIVIANI
O Jornal Pequeno publicou ontem, a íntegra do capítulo 2 do livro “Honoráveis Bandidos - Um retrato do Brasil na era Sarney”, do jornalista e escritor Palmério Dória. A obra – que está em 7º lugar entre os livros de não-ficção mais vendidos do país, segundo o “ranking” da revista Veja desta semana – será lançada em São Luís no dia 4 de novembro. O evento acontecerá no Sindicato dos Bancários (Rua do Sol, 413/417), às 19h.
No capítulo 2, intitulado “A Urna do Zé”, o autor conta como o menino José Ribamar Ferreira de Araújo Costa virou José Sarney, seus dias de secretário do tribunal de Justiça do Maranhão e o início de sua carreira política, sempre beneficiado pela influência do pai, o então desembargador Sarney de Araújo Costa.
A história da “urna do Zé meu filho”, carregada pelo desembargador para toda parte, e dos sorteios supostamente arranjados que o “rapaz de bigodinho” coordenava no Tribunal de Justiça são episódios remotos, mas reveladores do que viria a ser o senador que hoje é uma espécie de emblema da ausência de ética na política brasileira. Veja os textos.
A URNA DO ZÉ
Uma história alegra o anedotário político maranhense desde os idos de 1950. Pelas ruas de São Luís, lá vai o desembargador Sarney Costa. Carrega numa das mãos alguns livros, e uma caixa de madeira embaixo do outro braço. Tem forma de pirâmide, mas com o topo cortado e um tampo com uma fenda no centro. Ele só largava a caixa e os livros se passasse em frente de alguma igreja, para poder ajoelhar-se e fazer o sinal-da-cruz.
O desembargador, que chegou a presidente do Tribunal de Justiça, tinha um tique não muito raro, de piscar e repuxar para cima um dos olhos junto com o canto da boca. Foi ao Rio de Janeiro, inclusive, consultar-se com um grande neurologista que lhe indicaram, doutor Deolindo Porto. Mas desistiu na primeira consulta: o homem tinha o mesmo cacoete que ele.
O Sarney pai, que mais tarde daria nome a povoações e a tudo quanto é logradouro e prédio público Maranhão afora, quando o paravam na rua e perguntavam que caixa era aquela que carregava, respondia, batendo na madeira:
“Esta é a urna do meu filho Zé.”
O povo aumenta mas não inventa. A parábola dá urna evidencia a quem José Sarney deve sua carreira política. Ele começa sem identidade própria. É apenas o “Zé do Sarney”, por sua vez com tal nome registrado porque o avô do nosso herói, diz a história, quis homenagear um inglês ilustre que aportou a serviço no Maranhão e a quem todos chamavam de Sir Ney.
‘AL CAPONE SERIA MERO APRENDIZ’
O pai é quem lhe abre todas as portas. A família Costa veio do interior, de Pinheiro, no oeste, na região da Baixada, que forma grandes lagos na época das chuvas. Sarney, com 15 anos, começou a estudar no Liceu Maranhense. Aderson Lago, de tradicional estirpe política, ex-chefe da Casa Civil do governador maranhense Jackson Lago [cassado em abril de 2009], é uma memória viva daqueles tempos:
“Sarney nasceu, cresceu e criou dentes dentro do Tribunal”, diz Aderson, que faz o seguinte resumo: “O pai não era um fazendeiro abastado, empresário, não era porra nenhuma. Nunca tiveram nada. Nunca acertaram nem no jogo do bicho. Sarney não tem como explicar a fortuna que tem. Ele mesmo contou, quando presidente da República, na inauguração do Fórum Sarney Costa, que o pai teve que vender sua máquina de escrever para mantê-lo por uns tempos.”
Nascido em 24 de abril de 1930, pouco antes da revolução modernizadora liderada por Getúlio Vargas, José Sarney cursou Direito e iniciou-se na política estudantil na década de 1950. O pai arranja-lhe o primeiro emprego, secretário do Tribunal de Justiça. Nessa época, os processos eram distribuídos por sorteio. Colocavam os nomes dos desembargadores numa caixinha e o secretário do Tribunal era quem sorteava o relator de cada processo. Seus primeiros “negócios” foram feitos nessa caixinha. O desembargador que ele “sorteava” era sempre aquele que resolveria o caso conforme a sua conveniência.
Aderson Lago narra a história de certo engenheiro italiano que havia construído a fortaleza de Dien Bien Phu, no Vietnã, e para cá veio tocar a construção do porto do Itaqui, em São Luís – por onde meio século depois sairia o minério de Carajás e outras mil riquezas do Brasil.
Surgiu uma demanda judicial contra a empresa do italiano. No último julgamento, que a empresa perderia e, por isso, quebraria, descendo a escadaria do Tribunal, o italiano, referindo-se a Sarney, comentou com seus advogados:
“Se Al Capone estivesse vivo e aqui estivesse, diante desse rapaz de bigodinho seria um mero aprendiz.”
Na juventude, Sarney usava bigodinho à Clark Gable, como o cantor das multidões Orlando Silva e o Cauby Peixoto. E, como os colegas de sua idade, sonhava com um lugar na Academia Maranhense de Letras, que um dia ele conquistaria. Afinal, São Luís era a Atenas Brasileira. Ou melhor, segundo línguas mais realistas: a Apenas Brasileira.
Aos 24 anos, sem ter sido sequer vereador, Sarney se elege quarto suplente de deputado federal nas eleições de 3 de outubro de 1954, pelo Partido Social Democrático, o PSD de Victorino Freire, realizadas pouco depois do suicídio de Getúlio Vargas, e quem viveu na época não duvida que tal feito se deve a fraude na 41ª Zona Eleitoral de São Luís.
Nesse episódio é que se viu, durante um trote de calouros da Faculdade de Direito, um cartaz que mostrava o desembargador Sarney Costa com uma urna embaixo do braço e o balão:
“Essa é do Zé meu filho.”
A escada sempre era o pai. Aderson conta como Sarney se inicia de verdade na política:
“Ele começou como oficial de gabinete do governador Eugênio Barros, trabalhava no palácio. Pela influência do pai, sempre. Ele foi oficial de gabinete porque era brilhante? Não. Sim porque o pai era desembargador e a Justiça no Maranhão estava sempre atrelada ao governo.”
Em 1958, sim, ele então se elege deputado federal, já pela UDN, União Democrática Nacional. Não é mais José Ribamar Ferreira de Araújo Costa. Tomou para si o nome do pai e se tornou José Sarney. Assim, chega à Câmara Federal, ainda no Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, e assina o termo de posse a 2 de fevereiro de 1959, data que ele considera oficialmente com a do início de sua carreira política – cujo cinqüentenário ele comemorou em dia tão anuviado, apesar do sol sobre Brasília, naquele 2 de fevereiro de 2009 [dia da posse de Sarney, pela terceira vez, na Presidência do Senado].
Não lhe saía da cabeça o filho [Fernando], cérebro do império Sarney, transformado em caso de polícia, enquadrado pelos federais num rosário de crimes e sujeito a qualquer momento a ganhar um par de algemas em torno dos pulsos e ir parar atrás das grades.
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