segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

 

CONTRADIÇÃO OFICIAL

 O senhor Artur Lemos, secretário da Casa Civil do atual governo do Estado, diante da perspectiva de fracasso do aumento do ICMS, desabafou: “a sociedade vai pagar a conta não só se aumentar ou mexer em benefício. Vai precarizar serviços, que não será o caminho, porque afetará quem precisa do Sistema Único de Saúde, quem precisa de educação e deixará exposta à insegurança quem sai na rua”.

A falta de dinheiro vai prejudicar a educação? Prejudicar o que já está prejudicado, entregue ao descalabro que uma administração herda da outra e vai deixando como está?  Poderá a educação ficar pior do que está, com escolas precárias e insuficiência de professores? O governo atual não é de agora, não é novo no Palácio Piratini: a situação da educação não lhe é desconhecida, porque o descalabro dela já vem de longa data. O governador Eduardo Leite teve tempo de sobra para sanar todos os defeitos que afetam o setor educacional. Mas, deixou todos os problemas do Estado do Rio Grande do Sul de lado, porque o atraía uma visão nacional sobre si mesmo, buscava maior espaço para o seu ego.

A falta de dinheiro “afetará quem precisa do Sistema Único de Saúde”? Será? Por acaso esse Sistema Único de Saúde funciona às mil maravilhas? Mantém médicos disponíveis em todas as especialidades? Não necessita de longas filas de espera, para uma consulta com médicos especialistas, para a realização de cirurgias? Tem hospitais com vagas sempre disponíveis para internações?

E a segurança? Que segurança o Estado nos dá? Segurança do tipo correr montado em pangaré manco e magro atrás de bandidos? Desde quando alguém pode sair de casa, absolutamente seguro, sossegadamente, neste Estado? Com que autoridade vem agora o secretário da Casa Civil invocar o aumento do ICMS, como fator de segurança dos cidadãos?

Não é preciso ser doutor para saber que a administração de qualquer instituição não depende só de dinheiro; ela requer, além desse, sobretudo, capacidade do administrador.

Na realidade, independentemente de qualquer teoria, a administração da coisa pública funciona assim: uma parcela dos cidadãos trabalha, empreende, constrói, e dessa maneira fornece meios, através das obrigações fiscais, para o Estado. A essa classe de cidadãos pertencem os que investem em comércio, indústria e em várias espécies de serviços. Assim, geram empregos, que proporcionam consumo sobre o qual recai imposto. Ao Estado então só incumbe administrar a arrecadação, de tal forma que a outra parcela de cidadãos, a dos que não trabalham ou desfrutam de poucos recursos para alimentar os cofres públicos, não se sinta diminuída, não se sinta menos cidadã e tenha, à custa dos cofres públicos, saúde, segurança e educação.

Mas, o senhor Eduardo Leite, ao mesmo tempo em que suprimia benefícios fiscais para atenuar efeitos deletérios nos serviços essenciais do Estado, graças ao furado aumento do ICMS, escorregava em estupefaciente contradição, anunciando a criação da “Agência Gaúcha de Atração de Investimento e Promoção Comercial”. Nome pomposo para um cabide de empregos: a tal agência não terá servidores concursados.

 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 

ESPELHO, ESPELHO MEU...

O Estado é uma instituição destinada a administrar, em proveito da população, o desembolso compulsório a que essa está obrigada. Não é uma mina de fruição de prazeres para amigos e correligionários. Nem é também um espelho, como o da madrasta da Branca de Neve, que nunca lhe deu a resposta desejada.

Cobrado pela imprensa e pelo empresariado sobre o projeto de aumento do ICMS, o governador Eduardo Leite deu essa explicação: “como sou jovem, daqui a 30 ou 40 anos não quero ser lembrado como a pessoa que fez o Estado perder R$110 bilhões”...

Estará só pensando nele?  Só o maltrata uma possível má lembrança daqui a 30 ou 40 anos? Não o preocupam os trabalhadores que serão demitidos?

 A ninguém assalta a dúvida diante dessa realidade: as empresas, tendo que suportar o aumento dos impostos, evidentemente vão diminuir suas despesas, e o primeiro custo a ser cortado será o do vínculo trabalhista. Os desempregados, por sua vez, sem dinheiro, não terão como adquirir mercadorias. E sem uma grande massa de consumidores, o comércio numa ponta e a indústria na outra deixarão de recolher os impostos de que necessita o Estado para, entre outros encargos, pagar os vencimentos dos funcionários. Sem seus vencimentos pagos em dia, os funcionários se somarão aos desempregados. Essa soma implicará, contraditoriamente, na diminuição de mais uma parcela de consumidores.

Esse será o custo para o Estado hoje, cobrado pelo ego do governador, que pretende legar uma bela figura para a história. Mas, ele já está ficando na história, como governante desse solo gaúcho, trazendo à lembrança, mais do que ninguém, as palavras que atravessaram os séculos desde o dia 16 de abril de 1655, ditas por Luís XIV, rei da França: L’État c’est moi”, o Estado sou eu.

Tal é a impressão que transborda das palavras do governador Eduardo Leite: o Estado passa por ele, antes de chegar aos cidadãos. O governador é quem lhe dá brilho, lhe apara as arestas, o deixa bonitinho, bem apessoado, impecavelmente apresentado. Com essa responsabilidade, o governador não pode permitir que seja transportada para a história sua imagem deformada, de um jeito que o deixou mal no retrato.

O eleitor, porém, tem outra visão. Para ele, o exercício dos poderes de Estado não deve servir a seus eventuais ocupantes como mirante, onde eles enxerguem indícios de glória e sucesso em qualquer tempo e lugar, no curso da história. A administração pública é fácil: basta que a gastança não seja maior do que a arrecadação. Os empresários empreendedores, se não forem despojados, propiciarão empregos, que redundarão em tributos para o Estado.

Mas parece que a ideia dominante, tanto na área federal, como na estadual, ao longo de toda a história, sempre foi outra: não importa que o consumo e o emprego decresçam, fiquem menores. O que importa é que a arrecadação seja maior. Faltou dinheiro, mete-se a mão no bolso do contribuinte, que paga as viagens, os passeios e o protagonismo dos governantes pelo mundo afora.

sábado, 9 de dezembro de 2023

 

XINGAMENTO INSTITUCIONAL

Como assim, xingamento institucional? O adjetivo “institucional” é relativo às instituições, diz respeito a elas. Poderiam as instituições xingar alguém? Num país sério, não. As instituições, em razão de suas características, não devem ter defeitos, não merecem qualificações humanas.

Mas, no Brasil não é bem assim. Aqui, muitos homens não sabem respeitar as instituições, não sabem respeitar os cargos públicos nos quais estão investidos. E conseguem contagiá-los com os piores defeitos humanos. Melhor razão para isso não pode haver: vivemos numa democracia, o mais popular dos sistemas de governo por ser, presuntivamente, aquele que se identifica com os cidadãos. E aqui, neste país de 214 milhões de habitantes, a maioria absoluta é constituída por analfabetos funcionais. E essa maioria é que elege seus representantes para ocuparem os cargos nos Poderes Legislativo e Executivo. Esses Poderes, por seu turno, escolhem os magistrados que compõem os tribunais das instâncias mais elevadas.

Pois, nos últimos dias aconteceu o seguinte: o Senado Federal aprovou, com folgada maioria, um Projeto de Emenda Constitucional que limita a eficácia de decisões individuais de ministros do Supremo Tribunal Federal. Há muito tempo essas decisões, que o dialeto forense chama de “monocráticas”, têm afetado as funções dos Poderes Legislativo e Executivo. Mas só agora, os legisladores começaram a desconfiar de que suas funções legislativas estão sendo minadas; se deram conta de que um, unzinho, um despacho de um único ministro vale mais do que os votos da maioria do Senado ou da Câmara. Ou seja, vale mais o que decide um ministro, que não foi eleito pelo povo, que nunca testou sua liderança sequer na mesa de um bar, do que a vontade do povo, representada por quem o povo escolheu.

Sim, só agora os parlamentares, mas nem todos, descobriram que deveríamos estar vivendo numa democracia, onde “o poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Só agora descobriram que um ministro do STF, que lá está só porque teve apadrinhamento político, manda e desmanda, faz e desfaz, pinta, chuleia e borda, como se dispusesse de poderes plenipotenciários.

Mas essa descoberta arrancou rancores e rosnados de ministros do Supremo. Um deles, que até hoje certamente não esqueceu da dissecação de sua personalidade, feita por um colega, dizendo-lhe na cara que ele era “uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso, com uma pitada de psicopatia”, subiu nas tamancas, não para provar o contrário do que lhe foi jogado debaixo do nariz, mas para pespegar, nos parlamentares, um achincalhe de baixo calão acadêmico: “inequívocos pigmeus morais”.

Os senadores outra coisa não haviam feito, senão cumprir uma função constitucional. Então, que tipo de democracia os ministros do STF conhecem, não se sabe. O que entendem Suas Excelências por “harmonia entre poderes”, também não. Talvez por isso, três deles, Gilmar Mendes, Zanin e Alexandre de Moraes, havidos como doutores, senhores de altíssimos saberes jurídicos, para não se curvarem à vontade do povo foram pedir conselhos, ajuda ou pareceres ao Lula, que nem o ensino fundamental completou...

 

terça-feira, 28 de novembro de 2023

 

UM CADÁVER NA BALANÇA DA JUSTIÇA

 

Cleriston Pereira da Cunha morreu. Ele estava preso na Penitenciária de Papuda por conta de um inquérito judicial, transformado em ação penal pelos próprios ministros que o instauraram. Assim: juízes instauram o inquérito, remetem-no para a Procuradoria Geral da República, recebem a denúncia e julgam os réus.

 

Por conta desse inquérito foram presas mil pessoas, acusadas de fazerem parte “de um grupo que invadiu o Congresso durante os ataques, quebrando vidraças, espelhos, móveis, lixeiras, computadores, obras de arte e câmeras de seguranças”.

 

Evidentemente, uma única pessoa não poderia fazer todo esse estrago de uma vez só, em pouco tempo, porque tem apenas dois braços e não tentáculos de polvo. Para introduzir essa barbaridade no mundo do Direito, o inquérito alugou uma teoria de que não se ocupa o Código Penal Brasileiro, porque não a permite a Constituição: a teoria da culpa coletiva.

 

A individualização da pena é um princípio constitucional. Por força desse princípio, a menos que seja o mandante, ninguém pode ser condenado, sem que a denúncia se ocupe de circunstâncias que permitam identificar a atitude individual de cada um dos participantes de atos criminosos. No caso acima narrado, se trata, evidentemente, de múltiplos atos que geraram danos materiais no patrimônio público, e nada mais.

 

Ora, a denúncia requer exatidão e não generalidades, exatamente porque não há outra forma que leve o procedimento judicial a desembocar na individualização da pena. Em razão disso, o artigo 41 do Código de Processo Penal determina que a denúncia especifique o fato delituoso, com todas as suas circunstâncias. Não é por melhor razão que, com relação à individualização da pena, uma evidência, escorraçando qualquer dúvida, deflui do artigo 29 e seus §§1º e 2º do Código Penal: “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas cominadas, na medida de sua culpabilidade; se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço; se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até a metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.

 

Por aí se vê: a face revelada desse procedimento a que se entregou o Supremo é de algo que está muito longe de ser reconhecido como o “devido processo legal”, consagrado na Constituição Federal como um dos direitos fundamentais dos seres humanos.

 

Esse é exatamente o lado forte da “teoria da culpa coletiva”: a preponderância do Poder do Estado sobre os direitos individuais, a anulação das necessidades individuais diante dos objetivos do Estado. Tudo na contramão da Constituição Federal brasileira, em cujo artigo 5º estão consagrados os direitos do indivíduo contra a prepotência do Estado, a começar com o direito à vida. E não há direito à vida, sem direito à saúde.

 

Cleriston Pereira da Cunha, clamou por esse direito, secundado pela Procuradoria Geral da República, titular da ação penal. Mas, no lôbrego espaço do Poder Judiciário, seu clamor foi tragado pelo silêncio.

 

 

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

 

A POLÍCIA, O PCC E O CV

 

“A tática é uma velha conhecida nos meios policiais: o bandido entregar o que a polícia deseja para tentar evitar uma reação que atrapalhe em demasia os negócios das organizações criminosas”. Assim, Marcelo Godoy iniciou sua crônica no Estadão. Assim, sem vírgulas e com o verbo “entregar” no infinitivo. Mas, mais importante do que esse deslize, é a revelação por ele feita: o exército e a polícia federal conseguiram recuperar as armas furtadas do Arsenal de Guerra, em Barueri, porque foram enviados recados aos bandidos, ameaçando tirar-lhes o sossego.

O colunista então deu a conhecer, para todo o Brasil, essa “tática”, que é “velha conhecida nos meios policiais”.

Daí se tira a seguinte conclusão: a polícia tem condições de entrar em contato com a bandidagem que domina o país, para trocarem figurinhas a serviço de mútuos interesses. Depois dessa conclusão, evidentemente, vêm as perguntas que todos os brasileiros gostariam de fazer: se a polícia tem esse poder, se tem hegemonia sobre os criminosos, se sabe como arrancar deles o que ela quer, por que o crime domina o país, exibindo maior organização do que a do Estado?  Se ela e o Exército tiveram condições de dominar o crime, por que a população fica entregue ao deus-dará? Se basta uma ameaça “aos negócios das organizações criminosas”, por qual razão o povo, que sustenta o Exército e a Polícia, não é contemplado com um mínimo de segurança? Por que será que o alto comando do crime está instalado no sistema carcerário, donde expede ordens para as facções a ele subordinadas, pinta, borda, organiza rebeliões, elimina inimigos, sem que até hoje tenha sido molestado? Por que, volta e meia, em audiências de custódia, ou por ordem escrita de juízes, desembargadores ou ministros, a grandes figurões do tráfico é concedida a regalia da liberdade? Por que cargas d’água o senhor Fachin proibiu, durante o governo Bolsonaro, atraques policiais nas favelas, estabelecendo espaços onde a polícia estava proibida de operar? Não vale mais esse salvo-conduto? Ou alguém acredita que as organizações criminosas ignoram esse selo de impunidade?

Lembrem-se: quem assaltou bancos, sequestrou embaixadores e foi preso no regime militar, desfruta hoje das benesses e regalias do Poder. Da Lava Jato, que condenou corruptos e conseguiu devolução do dinheiro mal havido, mas agora está desmoralizada, só ficou como boa lembrança o japonês da Federal. O Mensalão prendeu quem? Além do denunciante, Roberto Jefferson, só peixes pequenos cumpriram pena.

Para a GLO do Lula o perigo está nos portos e aeroportos, onde foi colocado o Exército: longe dos quartéis generais do tráfico.

Agora estoura a notícia de que a Primeira Dama do Comando Vermelho e Rainha do Tráfico Amazonense foi recebida no Ministério da Justiça do Lula. Fora dos autos, Gilmar Mendes já sentenciou: “o crime organizado encontrou meios e formas de se situar na sociedade brasileira”. Ora, quem molda o Estado é a sociedade. Então, a falta de segurança é fruto do ventre da democracia, emprenhada por múltiplos incestos.

 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

 

         A RELIGIOSIDADE DO HOMEM

 

A certeza de que um dia perderemos o papel de personagens nesse enredo de lágrimas e prazeres, que é a vida, levou o homem de antanho a buscar uma alternativa. Diante dos fenômenos violentos da natureza, como raios e trovões, para os quais não encontrava explicação, sua imaginação o levou a criar divindades, atribuindo-lhes o poder de domínio sobre os colossais estrondos e assombrosos riscos ígneos no céu. Daí a imaginar que o firmamento servia como morada para esses deuses, foi um pulo. Esse homem, claro, não tinha consciência de sua constituição química, que não só o sujeitava a mutações, como lhe determinava prazo de validade. Mas ele possuía o instinto de sobrevivência, comum a todos os animais e nele avivado pela inteligência, que o levava a ter  um grande amor por si mesmo: o egoísmo. De modo que o instinto e o egoísmo não lhe permitiam aceitar a ideia de que tudo termina com a morte.

Do deus Javé, que se comprazia com o sacrifício cruento de inocentes pombinhas e cordeiros, aos deuses que celebravam os prazeres da vida, como Baco e Vênus, foi imensa a constelação de divindades criadas pelo homem, frutos de uma obsessão coletiva, ao longo de toda a história da humanidade.

A primeira narrativa, da qual brota essa obsessão, é a que relata a construção do Bezerro de Ouro, levada a efeito pelos judeus. Enfastiados com a liderança de Moisés, na jornada que os conduzia à “terra prometida”, eles resolveram criar um deus palpável como objeto de sua adoração.

Hoje o ouro é coisa rara, valiosíssima, muito cara para se tornar simples objeto de veneração, quando empregado em massa representativa de deuses ou seres assemelhados a divindades. Para isso servem a pedra, o cimento, a mão cinzeladora dos mestres ou a inteligência artificial. O Cristo Redentor do Rio de Janeiro e de Encantado arrastam multidões para lá. Espalhadas pelo mundo, as múltiplas denominações, imagens e estátuas de Maria, a quem os dogmas cristãos atribuem o privilégio de ter sido portadora do óvulo que deu vida a Jesus Cristo, disputam com Meca a estatística das atrações religiosas.

Agora está em moda o “turismo religioso”, que faz a alegria das Fazendas Municipais e das tesourarias de dioceses católicas.

Mas, a gente que olha essas coisas com olhos de simples narrador das peripécias do homem de hoje, não pode deixar de se entregar à compaixão por criaturas ingênuas, que servem como inocentes úteis a tais organizações públicas ou religiosas. Como aquela humilde criatura, de 73 anos que, entrevistada em Santa Maria sobre a festa da Medianeira, para cuja quermesse trabalha como cozinheira voluntária, disse: “a gente se doa de coração, vem para cá às seis da manhã e sai às quatro da tarde, mas não cansa, tudo por Nossa Senhora”.

Dona de um sentimento íntimo, que é a fé, do qual deve dar conta no confessionário, a respeitável idosa ignora que está servindo realmente a outros senhores, porque a “Nossa Senhora” não precisa disso.

 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

 

NINGUÉM É MELHOR DO QUE NINGUÉM

Dias atrás, em Jaboatão dos Guararapes, na grande Recife, foi encontrado morto, ferido na cabeça, a 300 metros de sua casa, um juiz de Direito. A polícia ficou diante de um enigma, não só com relação à autoria do fato, como quanto aos motivos que levaram à morte dessa pessoa. Nada seria descartado, segundo a delegada que preside as investigações. Isso quer dizer que a morte poderia ter ocorrido por questões pessoais, por engano, por encomenda, ou em razão do exercício profissional da vítima. De imediato, tratava-se de mistério, um labirinto de hipóteses, do tipo que serviria muito bem para os enredos de Agatha Christie, sem descartar a regra das investigações policiais francesas: “cherchez la femme”.

Mas, do fundo dessa nebulosidade, desse baralho de indagações, já se adiantaram algumas manifestações que fornecem assunto para crônicas nada policiais.

Em nota, disse o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “O uso da violência contra integrantes do sistema de Justiça é inadmissível. As instituições constituídas estão firmes e vigilantes em defesa do Estado Democrático de Direito e prontas para, dentro de suas esferas de atuação, apurar os responsáveis e aplicar as punições cabíveis aos envolvidos neste crime bárbaro”.

Só é “inadmissível” a violência praticada contra os integrantes do sistema de Justiça? Como assim? Só os juízes são providos de valores? A violência praticada contra o cidadão comum, aquele de cujo salário ou rendimento, é descolada a grana para pagar juízes, desembargadores e ministros de tribunais, é admissível? A violência praticada contra os pobres diabos que morrem, esperando por uma Justiça que não lhes faz justiça, é admissível?  Não são todos iguais perante a lei?

Ah, e aproveitando o infeliz ensejo, o Tribunal de Justiça dos gaúchos mostrou que não desafina no estribilho da cantilena “Estado Democrático de Direito”, regida pelo Supremo Tribunal Federal, em cujas encenações procuram fazer performances vários solistas de toga.

Então, as “instituições constituídas” só estão “firmes e vigilantes” na defesa desse “Estado Democrático de Direito”. Será em razão dessa limitada vigilância que, volta e meia, “integrantes do Sistema de Justiça” soltam bandidos, por sentirem pena deles, coitadinhos, na audiência de custódia? Ou será também por isso, por estarem só “firmes e vigilantes na defesa do Estado Democrático de Direito,” eles prendem inocentes, abdicando da aplicação do devido processo legal?

A pressa é inimiga da perfeição. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul devia partir desse axioma, para se pronunciar, seja sobre o que for. Prejulgamentos não sentam bem para juízes. As circunstâncias da morte do juiz de Direito ainda não tinham sido apuradas pela única “instituição constituída” competente, que é a polícia, quando saiu a nota. A nenhuma outra “instituição constituída” o bom senso permite opiniões apaixonadas, movidas a espírito de corpo. “Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença”. E a adjetivação, como “crime bárbaro”, só fica bem entre baforadas de cigarro e tinir de copos de chope, na mesa de um bar.

 

 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

 

QUESTÕES DE FÉ

Na semana passada o jornal Zero Hora noticiou que desde o dia 4 deste mês “e até o dia 29, a alta cúpula da Igreja Católica e representantes de todo o mundo se reúnem no Vaticano para debater o futuro da fé de 1,3 bilhão de pessoas”.

Como assim, “debater o futuro da fé”? Sabe-se que a fé é uma questão de foro íntimo, como qualquer sentimento, como a esperança, a angústia e dezenas de outras reações emotivas. Por isso a fé de milhões de pessoas não pode ser tomada como um sentimento coletivo. Então, não se pode dizer que ela tem passado, presente ou futuro. Até porque, se se trata de crença numa só divindade, por exemplo, ela sempre será a mesma, independente de tempo e espaço.

Pior ainda será “debater” a fé das pessoas. É uma expressão que soa enigmática. Ou será que a Igreja Católica está querendo mudar o objeto, ou o conteúdo da fé de mais de um bilhão de pessoas? Ou estará imprimindo outro rumo para as crenças?

Nada disso transparece do restante do texto da Zero Hora. O que se colhe dali é que a Igreja quer saber que tipo de resposta poderá dar à fé de seus adeptos, para robustecer ou pelo menos manter viva a crença ou a confiança nela como instituição. Diz-se que consultará os crentes sobre temas como o sacerdócio para as mulheres e a jurisdição clerical para homens casados. Não é segredo para ninguém que está havendo uma grande evasão de crentes católicos para outras religiões. E, no fundo, esse é o motivo do conclave no Vaticano, do qual participarão também pessoas leigas, além de padres, bispos e cardeais.  Será debatido, isso sim, o futuro da Igreja, não da fé.

Mas, por coincidência, ao mesmo tempo que serve de motivos para conclaves promovidos na Igreja Católica, a fé hoje produz selvageria criminosa, mortandade de inocentes, torturas - instrumentos já usados pela mencionada instituição cristã, através da Inquisição.

Os ataques do grupo Hamas, que hoje despertam o horror no mundo inteiro, causando repúdio em pessoas de bom senso, são devidos à fé.  Segundo seus líderes, amigos do Lula e da esquerda brasileira, todo esse furor bélico foi desatado “em defesa da mesquita de Al-Aqsa”. A localização dessa mesquita, em Jerusalém, é o que motiva a interminável tensão entre judeus e maometanos. Ela se situa num local que é objeto de veneração dos judeus, pois ali havia dois templos antigos que foram destruídos. Mas, para os maometanos esse mesmo local é também um objeto de intensa veneração. Domina-os a crença de que foi nessa mesquita que Maomé, vindo de Meca, orou e, logo depois, subiu aos céus.

Pelo que se conhece da história, a violência desde os tempos bíblicos esteve enxertada na fé. Não se sabe como Maomé encarava a paz. Mas, no cristianismo o apóstolo Mateus (10:34) botou na boca de Jesus Cristo essas duras palavras: “não penseis que vim trazer paz à terra, mas a espada”.

 

domingo, 22 de outubro de 2023

 

UM DIREITO TERMINA, ONDE O OUTRO COMEÇA

 

O senhor Miguel Reale Júnior aparece no “Espaço Aberto” do Estadão como advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito de São Paulo (a mais famigerada do que afamada USP), membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça. É importante informar que foi ministro da Justiça no governo de seu amigo e correligionário socialista Fernando Henrique Cardoso.

Com base nesse currículo, Miguel Reale é tido e venerado como respeitável jurista pela casta da esquerda. Pois o dito senhor, em seu mais recente artigo, “O STF e a efetividade dos direitos fundamentais”, se põe em defesa do Supremo e da dona Rosa Weber, na questão do aborto.

A frase inicial, por ele construída, trama contra a elegância de estilo que se supõe de caráter acadêmico. Assim: “o STF, na missão de proteção dos direitos fundamentais, pode e deve excluir normas impeditivas de sua efetividade”. “Sua efetividade”. O pronome adjetivo “sua” se refere a qual substantivo: STF, missão de proteção, ou normas?

A clareza na exposição de ideias fornece a dimensão da capacidade de expressão de quem as formula. O vocábulo “efetividade”, muito usado por supostos juristas, não é apropriado para a necessária clareza, em razão das variadas significações a que ele se presta. No texto de Reale fica pior ainda, jungido a um adjetivo possessivo perdido no palavrório, criando desairosa ambiguidade.

Mas, críticas ao estilo à parte, o que importa mesmo é a posição do doutor sobre o aborto. Diz ele: “o conflito entre valores – de um lado a proteção da vida desde a concepção e, de outro, a proteção da autonomia e da saúde da mulher – há de ser resolvido por via da regra da proporcionalidade”. A seguir, se reporta ao voto de Rosa Weber, dizendo que para ela “compete à mulher tomar a decisão pela maternidade, sendo uma escolha e não uma obrigação coercitiva, conforme autodeterminação privada, uma das expressões da dignidade humana”. Na mesma linha, Reale passa a usar o modo reflexivo, que deixa dúvidas quanto ao autor do pensamento, se é ele ou dona Rosa: “na ponderação de deveres constitucionais, conclui-se dever preponderar o direito à integridade física e psíquica da mulher e à autonomia no exercício da liberdade reprodutiva”.

Então, fica assim: para Miguel Reale e outros Espíritos Sublimes, entre o direito ao prazer, conferido à mulher, e o direito do nascituro à vida, esse último vale menos do que nada. Esquecem eles que, a partir da concepção, são dois direitos, ou “dois valores” constitucionais distintos, que se separam. Um termina, onde outro começa. A mãe não se torna proprietária desse direito fundamental do nascituro: o direito à vida. Esse direito passa a ser dele. O direito dela se esgota na escolha entre engravidar ou apenas desfrutar das delícias do amor. O “conflito entre valores” somente surge e assim só pode ser visto sob outro prisma ontológico, se a relação sexual for obra de coação, violência, ou se da concepção advierem danos físicos ou psíquicos à mãe.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

 

MANDATO PARA MINISTROS DO STF

 

A reanimação do PEC 16/ 2019 pode ser apenas um chamarisco, tipo um pobre lambari no anzol, para atrair a atenção dos peixes grandes, que se acomodam em cargos vitalícios e deles se aproveitam, criando mordomias e privilégios pessoais, como se fossem donos da República. Quem sabe ele sirva apenas como chamada para um exame de consciência, a partir do qual tudo se possa resolver, dentro dos limites do bom senso. Trata-se de um Projeto de Emenda Constitucional, de autoria do senador Plínio Valério, adormecido nas gavetas do senado, que agora vem mexer com o Supremo, sinalizando com o fim da vitaliciedade no cargo de ministro.

Pode ser apenas isso ou, mais do que isso, talvez seja um despertador de sonhos maravilhosos, chamando para a realidade vivida por seres comuns neste país. Seja como for, é uma grande ideia do Senador. E o momento é propício para sua concretização, porque ele aparece quando a maioria parlamentar, insatisfeita com o comportamento do STF, impõe a obstrução de votações, exigindo condições para que se molde o Supremo àquele papel que lhe é destinado num regime verdadeiramente democrático. E o meio encontrado para tal finalidade foi instituir um mandato de oito anos para o exercício no cargo de ministro da Corte.

O primeiro, a quem a notícia do PEC do mandato parece ter feito mal para o fígado, foi Gilmar Mendes. “Agora ressuscitaram a ideia de mandato para o Supremo. Comovente ver o esforço retórico feito para justificar a empreitada. Sonham com as Cortes Constitucionais da Europa, entretanto o mais provável é que acordem com mais uma agência reguladora desvirtuada. Talvez seja esse o objetivo” – escreveu ele no X, como é chamado agora o antigo Twitter.

A resposta do senador Plínio Valério às insinuações de Gilmar Mendes não se fez esperar “eles se sentirão como seres humanos normais”, porque o mandato lhes imporá “o sentimento de que não são semideuses e que estão sujeitos a mudanças, com avaliações e aperfeiçoamentos periódicos”.

Considere-se que os senadores, por não serem profissionais atuantes da advocacia, não conhecem a metade da missa. Certamente, eles ignoram que o STF cria súmulas vinculantes inconstitucionais, não só interpretando restritivamente a legislação processual, como impedindo que recursos estribados nos direitos fundamentais tenham curso. Em outras palavras, viola o art. 5º, inc. LV da Constituição, limitando o direito de defesa, ao negar seguimento recursal.

Claro, muita coisa mudará, a partir da conduta pessoal de quem vestir a toga de ministro, se for aprovado o PEC. Se a finalidade projeto é a de fazer os ministros se sentirem “como seres humanos normais”, no dizer do Senador Plínio Valério, os togados supremos não se outorgarão genialidade, nem usarão o poder como poção que desoprime o peito e os pulmões, traz graça e felicidade. Suas noções e opiniões sobre a Constituição Federal não mais serão transformadas em lei, mas voltarão a ocupar a sede merecida dos juízos de valor. Só assim se livrará o Supremo da pecha de “agência reguladora”.

  

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

 

SÓ AGORA?

De um momento para outro, alguns deputados descobriram que o Supremo Tribunal Federal está usurpando as funções legislativas. Quem tomou a iniciativa de denunciar esse comportamento foi a Frente Parlamentar da Agropecuária. No levante contra indevida intromissão do Judiciário, ela arrastou consigo as da Segurança Pública, dos Produtores de Leite, dos Contra as Drogas, dos Evangélicos e dos Católicos.

Nunca, na história brasileira, a sociedade havia se dado conta de que existe um tribunal superior, composto por pessoas com larga experiência de vida mas que, apesar de toda essa bagagem, não são conduzidas por regras primárias de exegese, que evitariam a incrustação de atividade legiferante em suas decisões.

O ato de julgar exige meditação, análise, silêncio e solidão. Tais requisitos estão muito longe de quem se entrega à exposição pública e se torna personagem de noticiários da imprensa. O juiz que assim se comporta, acaba sendo julgado pela opinião pública. E esse julgamento a que se expuseram os ministros do Supremo Tribunal Federal não ficou em segredo de Justiça. As primeiras críticas apareceram nas redes sociais com ironias, ataques diretos e humor escaldante. A imprensa que, de um modo geral, costumava tratar o STF como entidade intocável, merecedora de mesuras e genuflexões, só se manifestou, quando a desilusão com a Justiça já era um assunto que enchia a boca do povo e se tornava pauta para corajosos colunistas que não temem toga. Recentemente até editoriais de grandes órgãos da imprensa se deram o direito de ingressar no coro das críticas, pondo de lado seu temor reverencial.

Não foram poucas as vezes em que, servindo de eco para as manifestações contra a fria indiferença do Parlamento, diante de decisões do STF que ultrapassavam a linha divisória das atribuições dos Poderes, a imprensa denunciava o silêncio omisso da Câmara e do Senado.

Mas agora, quando algumas decisões daquele Tribunal passaram a mexer nos interesses de certos grupos, deixando transparecer que o grito de guerra dos caciques e rezas dos pajés soam melhor nos ouvidos da Justiça do que o discurso do agronegócio, parece que o Parlamento se acordou. Agronegócio é dinheiro e quem patrocina muitos mandatos parlamentares é esse dinheiro. Mandatários que não atendem aos interesses dos mandantes se arriscam a perder os mandatos. O mesmo raciocínio vale para a Frente Parlamentar dos Produtores de Leite.

Ao demarcar o território indígena, restringindo a área utilizada por agricultores e pecuaristas, o Supremo Tribunal Federal mexeu num abelheiro. A imediata resposta do campo e da lavoura foi firme, decidida: paralisar o Congresso, para que ele trate de preservar sua independência.

Os representantes do povo, que clama por segurança, vendo, na perspectiva da liberação das drogas, um reforço para o crime, aderiram à rebeldia.

Com seu voto, Rosa Weber revolveu o estômago dos cristãos, despertando neles a lembrança de Herodes, o matador de criancinhas. Foi a vez dos religiosos aderirem à exigência de respeito à competência do Legislativo.

A maioria parlamentar, representando o povo, está advertindo o STF: aprendam a interpretar, sem legislar.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

 

CRIME IMPOSSÍVEL

Está na hora de botar em pratos limpos o tão comentado assunto dos “atos antidemocráticos” ocorridos em 8 de janeiro em Brasília. Comecemos pela Constituição Federal. Ali está escrito com todas as letras, no inciso XLIV do artigo 5º, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de direito”.

Mas, a Constituição não é a sede adequada para decidir sobre a tipicidade e a punição de fatos tidos como crimes. Se está escrito na Constituição que isso ou aquilo é crime, de nada valerá a norma constitucional, se não houver lei penal descrevendo a ação delituosa e as respectivas penas.

Quando foi promulgada a Constituição do senhor Ulysses Guimarães, em 1988, vigorava a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983, cujo artigo 17 descrevia como crime “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente, ou o Estado de Direito”. Era a Lei de Segurança Nacional do governo João Figueiredo.

Essa Lei vigorou sob os auspícios da Constituição de 1988 durante 33 anos, só sendo revogada pela Lei 14.197/21, cuja sanção traz, por ironia do destino, as assinaturas de Jair Bolsonaro e Anderson Torres. Ela passou a integrar o   Código Penal, nele incluindo o Título XII: “DOS CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO”. Entre esses crimes figura, no artigo 359 L, o de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes institucionais”.

Consta em diversos noticiários da imprensa que no dia 8 de janeiro do corrente ano “houve ataques à sede dos três Poderes e à democracia, com terroristas quebrando vidraças e móveis, vandalizando obras de arte e objetos históricos, invadindo gabinetes de autoridades, rasgando documentos e roubando até comida”.

Com base nesses fatos assim noticiados, foram presas centenas de pessoas e algumas delas até já condenadas em processo instaurado e julgado pelo STF.

A hermenêutica existe para evitar que a leitura isolada de um dispositivo legal, como esse artigo 359 L, sirva à desincumbência dos encargos judiciários. Ora, ele integra um conjunto legal orgânico, do qual faz parte outro dispositivo, o artigo 17 do Código Penal, indispensável na exegese criminal: “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.

Seria o Estado Democrático de Direito tão frágil, tão insignificante, desamparado de qualquer sustentáculo, a ponto de ser abolido mediante vidraças e obras de arte quebradas, invasões de gabinetes institucionais, supressão de documentos...?

Não é necessário ser altamente letrado, nem possuir o máximo de QI, para concluir que tais patacoadas não são dotadas de potencial ínsito, capaz de anular regimes de Estado, quaisquer que eles sejam.

Gente destrambelhada, sem juízo, iludida, embriagada por delírios, merece punição por danos causados ao patrimônio público; mas, não através de decisões que se aproveitem da cegueira da Justiça, para usá-la como justiceiro de cadafalso.

 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

 

                                                      ERA UMA VEZ UMA DEUSA

A pobreza intelectual, entalada em certas decisões judiciais, só surpreende a quem não sabe como são feitas as leis, a salsicha e as indicações para os cargos de ministro dos tribunais superiores.

Esse fenômeno tem origem numa mudança de costumes que  vem se operando na sociedade, não da forma lenta e gradual que é própria da evolução humana, mas pela força da tecnologia. As chamadas “redes sociais” são as principais responsáveis por essa rapidez de mudanças que alcançam várias gerações ao mesmo tempo. E foi assim, graças à força de uma comunicação sem limites, que a clausura da Justiça, onde se abrigavam provectos senhores antigamente, foi aberta.

Foi o próprio Supremo Tribunal Federal que, por primeiro, deu ouvido a certos clamores, para dar impulso às mudanças no próprio sistema de governo, usurpando as funções do Legislativo. Sustentado em arremedos de filosofia importada por um juiz gaúcho, o ministro Luiz Fux lançou mão de um expediente não reconhecido no Direito como modo de interpretação: ignorou o sentido das palavras “homem e mulher” no §3º do artigo 226 da Constituição Federal, para permitir a união estável a pessoas do mesmo sexo. Ou seja, reformou Constituição, função que é exclusiva do Poder Legislativo. Foi uma decisão de natureza política, porque a ciência do Direito não a autorizava.

A apatia do Poder Legislativo foi um dos fatos que promoveram a transformação da clausura do Judiciário em palco de cortinas levantadas, com apresentações imunes à censura e à proibição para “menores”. Mas, o surgimento do então juiz Sérgio Moro como figura pública foi, provavelmente, o ponto de partida mais palpável para a popularização do Judiciário, transformando-o em assunto preferido para manchetes na imprensa e tema para mesas de bar, comentários de taxistas e barbeiros.

Não foi preciso muito tempo para que o então magistrado fosse guindado ao posto de herói nacional, munido de escudo e espada para atacar a corrupção na política brasileira. Era tudo o que o povo via nele: o seu representante para materializar o desejo de botar na cadeia políticos que enriquecem com o dinheiro do contribuinte. A fama e o poder do ídolo criado pelo imaginário popular lhe emprestaram coragem para ultrapassar limites na interpretação da lei, como fizera Fux. E a chamada operação “Lava Jato” passou a ser usada como forma coercitiva de obter provas, através da delação premiada. Eram presos supostos corruptores, para entregarem os corrompidos.

Arrastado pelo caudal da “Lava Jato”, Lula foi parar na cena judiciária, como o anti-herói que alimentava a fama crescente de Sérgio Moro. E esse acabou embretado: se absolvesse Lula, despencaria para o abismo da repulsa popular; se o condenasse, teria consolidada sua imagem como ídolo. Um drama que juiz nenhum gostaria de viver.

A condenação sobreveio como um trançado inextricável, entretecido com fios de delação. Desde então o Brasil se dividiu, porque a trança, não podendo ser desenleada na forma da lei, foi decepada pela espada da Justiça. E a deusa Têmis perdeu sua divindade em Brasília.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

 

                                              AS DESGRAÇAS E OS POLÍTICOS

À fúria com que a natureza se abateu sobre o Rio Grande do Sul, na semana passada, ninguém poderia se manter alheio, frio, indiferente. Em momentos como esse, se aguça em muitas pessoas o sentimento gregário do animal humano, e a solidariedade se concretiza das mais diversas formas, dependendo das disponibilidades de cada um. Na imprensa, a pura e simples divulgação das notícias, principalmente as atinentes a desgraças que roubaram vidas, destruíram famílias, deixaram gente ao relento, têm o seu lado positivo, despertando a vontade de ajudar.

Mas, há também o lado opinativo da imprensa, do qual não se desvincula uma alta dose de subjetividade. A jornalista Rosane Oliveira, da Zero Hora, é conhecidíssima pelo seu talento em analisar política. A impressão que se tem é de que, mesmo que ela queira, não consegue se abstrair da política, diante de fatos que não são políticos por natureza, como esses que, movidos pela fúria das águas, com um horror de mitologia bíblica, causaram tragédias no Estado.

Em sua coluna, diz a referida jornalista que “a presença do prefeito, do governador ou do presidente em locais que enfrentam uma tragédia climática é menos importante do que as medidas concretas que os governos adotam”. Mas, depois dessa verdade dogmática, ela envereda para o lado que seu filão jornalístico não dispensa: a política. Então, afirma: “levar conforto aos que perderam parentes e mostrar que está ao lado deles é próprio dos líderes”.

Nada disso. A solidariedade das “lideranças” se concretiza com a transformação dos impostos em proveito do povo – e não no estelionato do abraço eleitoral patrocinado pelo infame fundo partidário. O povo paga impostos pelo direito à vida, com pontes, estradas e previsões climáticas seguras, desassoreamento de rios – e não para ouvir palavras de consolo. A dor de ninguém sumirá com a presença de um político. A perda de um ente querido não encontra consolo em abraços, apertos de mão, batidinha nas costas. O desespero de quem ficou apenas com a roupa do corpo, tiritando de frio e de medo, à espera de socorro, jamais será uma lembrança apagada ou um trauma debelado pelos afagos de gente que só é movida por ambições políticas.

O Lula, é claro, foi também foco das considerações políticas. Ele “poderia descer em Lajeado e ali fazer ao vivo uma manifestação de conforto”, assinala a colunista.

Dado o tom, o coral da grande imprensa entoou um clamor, pela ausência do Lula, como se a presença dele pudesse realizar o milagre da reposição de todas as coisas no lugar, devolvendo ao povo, machucado pelas perdas e lutos, a paz e a reconciliação com a vida. Como se Lula fosse o arco-íris em pessoa, ou encarnasse Moisés, recuando os rios para dentro de seus leitos.

Só aos verdadeiros analistas pode acudir a evidência de que, embriagado pela exacerbação de seu ego, Lula se sentia mais importante entre os tiranos que apoiam o bandido Putin, do que no cenário de uma das maiores desgraças deste país.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

 

        O RAP SEM REBOLADO DA JUSTIÇA ELEITORAL

Sob o slogan “na hora da verdade, a democracia fala mais alto”, a Justiça Eleitoral agora está aparecendo na televisão em ritmo de “rap”. Para quem não sabe: “rap” é um discurso com trilha sonora, coalhado de insatisfações e antíteses, inventado por afrodescendentes nos Estados Unidos. No “rap” da Justiça eleitoral, porém, não aparece a deslumbrante paisagem de traseiros rebolando ao ritmo dos quadris. E, embora o discurso seja sobre “democracia e respeito de diferenças” lá também não aparecem loiras de cabelos compridos, soltos, sacudidos pelo embalo forte da percussão.

O discurso é cantado por atores cujo rosto estampa uma expressão fechada, onde não há espaço para um sorriso, porque a cena do vídeo expedido pela Justiça Eleitoral sugere desavença entre um casal e soa como um “justiciamento de las brujas”: “liberdade de expressão não é licença pra espalhar mentira, ódio, golpe, desavença; democracia é conquista, não é sorte; pode recuar que a consciência aqui é forte”.

Além de não transmitir, quer por expressões cênicas, quer no seu conteúdo, uma conclamação à concórdia, ao apaziguamento dos ânimos, o discurso da Justiça Eleitoral investe na força dos mais poderosos: “democracia é conquista: pode recuar que a consciência aqui é forte”. Da expressão “pode recuar” soa um sentido de imposição, de autoridade, de força. Aliada ao substantivo “conquista”, a referida expressão sugere guerra, domínio, e não paz.

E toda essa toada fora de lugar se explica pela simples razão de que a Justiça Eleitoral não tem competência legal para fazer o que fez. O vídeo divulgado como se fosse da Justiça Eleitoral outra coisa não é senão obra do Tribunal Superior Eleitoral. Esse tem sua competência definida no artigo 22 do Código Eleitoral, instituído pela Lei nº 4737, de 15 de julho de 1965, e nessa competência se ressaltam os verbos “processar e julgar”, no que diz respeito à função jurisdicional.  No artigo 23 do mesmo Código estão definidas suas funções administrativas, atinentes à organização e ao desenvolvimento dos serviços exigidos pela finalidade principal do tribunal que é somente “processar e julgar”.

O dispositivo que permite interpretação extensiva da competência do TSE é o inciso XVIII do referido artigo 23: “tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral”. Mas, nenhum artigo da “legislação eleitoral” confere ao referido Tribunal a faculdade de usar dinheiro do povo, para pagar publicidade arvorada em intérprete dos direitos desse mesmo povo.

A obediência aos “princípios da legalidade e da moralidade” é imposição do artigo 37 da Constituição Federal à “administração pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e dos Municípios”. O que legal não é, não pode ser patrocinado pelos cofres públicos.

A democracia que fala mais alto é essa: o povo escolheu seus representantes, os constituintes, e esses, em nome dele, promulgaram uma Constituição que, “comprometida com a solução pacífica das controvérsias”, lhe concede liberdade, não lhe tapa a boca, não o amordaça. Diante dessa Constituição, o rap do TSE perde o rebolado.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

 DONDE VIEMOS E PARA ONDE VAMOS?

Em magnífico artigo publicado no Estadão sob o título de “A Tirania da Mediocridade”, Rubens Barbosa critica a “mediocridade da classe política dirigente” da qual emana “despreparo, nepotismo, apadrinhamento” que, no seu dizer, constituem “formas disfarçadas de corrupção nas nomeações para o serviço público e para as filiações partidárias”. Para ele, o Brasil precisa sair em busca “de eficiência e de resultados com visão de futuro, com uma nova liderança política e uma burocracia mais competente”.

Dono de currículo invejável, o embaixador, e hoje consultor de negócios Rubens Barbosa está coberto de razão. O Brasil, longe de estar “deitado em berço esplêndido”, se comporta como um gigantesco transatlântico que navega, desde longo tempo, por mares encapelados, sem mãos de mestres no leme.

A bem da verdade: nunca, na história desse país, tivemos dirigentes que servissem de modelo como administradores da coisa pública ou distribuidores das graças alcançadas com o dinheiro dos contribuintes. Há muitos e muitos anos se houve falar de um “futuro do país”, que geração nenhuma enxergou, porque ele é sempre adiado pelos dirigentes do momento. O “despreparo”, o “nepotismo” e o “apadrinhamento”, atrelados à pura ambição pelo poder, são as linhas mestras da governança desse país. O povo não passa de importante peça decorativa, para que os poderosos encham a boca com a palavra “democracia”, com a finalidade de exaltar a política, atribuindo aos políticos o papel de salvadores da pátria. E, entra ano, sai ano, no palco da política a pantomima é a mesma: engrandecer a democracia, porque é em nome dela e por conta dela que os políticos enriquecem, num país pobre.

Nos dias atuais, mais do que nunca, a palavra “democracia” serve de senha para desmandos. Do “fundo partidário”, que outra coisa não é senão uma forma imoral, mas “legal”, de sustentar políticos no poder, às prisões desatreladas do “devido processo legal” para combater “atos antidemocráticos”, a “democracia” é enaltecida como saída única para enxergar a luz das estrelas que iluminam o caminho do bem do Brasil – como diria um poeta daqueles tempos em que foi composto o hino nacional.

Mas nós, o povo, nem sonhar podemos com a luz das estrelas. A única luz que nos sobra é a luz mortiça da mediocridade. Sim, da mediocridade, que dá luz ao “despreparo, ao nepotismo, ao apadrinhamento”, regras não previstas numa Constituição “democrática”, para colocar poderes nas mãos de pessoas que acabam se transformando em sumidades, sem qualquer esforço, inteligência ou capacidade.

Só a mediocridade ou a leviandade podem aproveitar o conceito jurídico de democracia para usar o povo como trem pagador de planos de saúde vitalícios para políticos e juízes da alta corte, como patrocinador de “verbas pessoais”, que sustentam o “despreparo” e o “apadrinhamento” em cargos de confiança de todos os Poderes, e como fonte segura, inesgotável, para pagar auxílio-creche, auxílio-transporte, auxílio-alimentação, auxílio-moradia e outros penduricalhos que privilegiam servidores públicos.

Enfim, como tudo na vida: viemos do nada e para o nada voltaremos, enquanto dependermos da mediocridade.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

 

PESANDO MACONHA

 

A Defensoria Pública ingressou no Supremo Tribunal Federal com ação direta de inconstitucionalidade, questionando o artigo 28 da Lei nº 11.343/2006. De acordo com o referido artigo, “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo próprio, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos de drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

 

A tese da Defensoria Pública se sustenta na afirmação de que esse dispositivo viola a intimidade e se intromete na vida privada do consumidor da droga, cujo uso, em tal caso, não compromete a saúde pública.

 

A indigência de tais premissas causa surpresa para quem, dominando o vernáculo, tem intimidade com a hermenêutica jurídica. O núcleo do tipo penal descrito no “caput” do artigo 28 da Lei 11.343/06 não está na expressão “para uso próprio”. O conteúdo ontológico de todo e qualquer tipo penal sempre está na ação praticada, que só pode ser definida pelo verbo. No caso, os verbos que definem essa conduta penal são: adquirir, guardar, transportar e ter (em depósito ou consigo) drogas, violando normas legais.

 

O “uso próprio” é apenas uma circunstância pessoal, que serve para atenuar a pena. A expressão está fora do lugar, denunciando erro primário de técnica legislativa. O crime existe, independente das condições pessoais. Essas só prevalecerão, para os fins de “individualização” da pena. E se o crime existe independente das condições pessoais, só a heresia jurídica enxerga no dispositivo penal uma violação da “intimidade” e da “vida privada” do agente.

 

O STF até agora reconheceu a constitucionalidade do mencionado artigo. E devia ter ficado só nisso, para não posar na vitrine dos vexames. Mas, alguns ministros se puseram a cavar inconstitucionalidades nas circunstâncias que podem abrandar a pena, ignorando, com impávida majestade, a competência do Poder Legislativo. Um deles, sugeriu peso de 25 gramas, como padrão para definir “pequena quantidade”. Outro foi mais longe: 60 gramas. Pior foi um terceiro, que traiu o próprio desconhecimento da Lei: aventou a extensão da aplicação da lei aos usuários de outras drogas, circunstância já expressamente prevista no § 1º do art. 28.  

 

A nenhum ministro acudiu a evidência de que juízos de valor não se armam com pesos e medidas, mas com lógica. Para tanto, a Lei 11.343/06 fornece, no §2º do art. 28, os elementos constitutivos do silogismo jurídico: “natureza e quantidade da substância apreendida, condições em que se desenvolveu a ação, condições sociais e pessoais, conduta e antecedentes do agente”.

 

Aí está o que os ministros até agora não enxergaram na Lei. Ousaram sugestões de quem não a conhece. E, como se nada houvesse pior que isso, ainda usurparam a competência do Poder Legislativo: em se tratando de lei penal, qualquer acréscimo ou supressão implica modificação da tipicidade. A balança é apenas um símbolo conhecidíssimo da Justiça e não um instrumento de que deva se servir o juiz para pesar drogas.