Janer Cristaldo
Está tramitando na Câmara um Projeto de Lei
do deputado Giovani Cherini (PDT-RS), que regulamenta o exercício da profissão
de filósofo em todo o País. A idéia não é nova. Como toda péssima idéia,
circula com velocidade de moeda ruim.
Em 2008, comentei um projeto que regulamentava a profissão de astrólogo. Já havia sido aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e aguardava votação no plenário. De autoria do senador Artur da Távola, a proposta definia quem poderia exercer a astrologia e as atribuições dos profissionais, entre elas, o "cálculo e elaboração de cartas astrológicas de pessoas, entidades jurídicas e nações utilizando tabelas e gráficos do movimento dos astros para satisfazer às indagações do público". Já na época, o velho bolchevique anunciava que pretendia apresentar projeto regulamentando a profissão de filósofo. Filósofo não seria mais quem filosofa, mas quem tem carteirinha de filósofo.
Artur da Távola morreu naquele mesmo ano e não tenho idéia do que foi feito de seu projeto. Mas suponho que astrólogo algum lamentou sua morte. Astrólogos são franco-atiradores. Você está desempregado e não tem habilitação para ofício algum? É só sair a fazer mapa astral para ingênuos. Os ingênuos são legião. Se você tiver boa lábia, pode até fazer uma grana razoável.
Antes do projeto de regulamentação da profissão de filósofo, dois outros tramitavam no Congresso pretendendo regulamentar a de teólogo. Teólogo não seria mais quem cria teologia, mas quem tem carteirinha de teólogo. Pelo jeito, a profissão está se se revelando lucrativa, pois os projetos pretendem restringir o livre exercício da parlapatagem. O projeto de lei 114/05, obra do bestunto do senador e bispo evangélico Marcelo Crivella, cria o Conselho Nacional de Teólogos, que seria a representação única dos teólogos do Brasil. Ou você pertence ao Conselho ou não teologiza mais. Ou se teologiza, está exercendo irregularmente a profissão. Este projeto inclusive recebeu parecer favorável do senador Magno Malta, pastor da Igreja Batista. Enviado para a Comissão de Assuntos Sociais do Senado, estava pronto há uns quatro ou cinco anos para entrar na pauta de votação.
O segundo projeto, o 2.407/07, do ex-deputado Victorio Galli, pastor da Assembléia de Deus, é mais bizarro. Diz que “teólogo é o profissional que realiza liturgias, celebrações, cultos e ritos; dirige e administra comunidades; forma pessoas segundo preceitos religiosos das diferentes tradições; orienta pessoas; realiza ação social na comunidade; pesquisa a doutrina religiosa; transmite ensinamentos religiosos, pratica vida contemplativa e meditativa e preserva a tradição”. O projeto soa a samba do crioulo doido: mescla a função de sacerdotes com as de administradores de comunidades e psicanalistas. Só não prevê que o teólogo faça teologia. Nele vê-se mais uma vez o dedo dos pastores evangélicos, que querem promover a teólogos seus camelôs televisivos.
Segundo a notícia, esse perfil abrangeria
todos os padres, pastores, ministros, obreiros e sacerdotes de todas as religiões.
O número passaria de um milhão, pela estimativa do Conselho Federal de Teólogos
(CFT), com base em dados do IBGE. Hoje teólogos devem ser formados em cursos de
graduação. Ou seja, no que depender da aprovação do projeto, tanto Paulo, como
Anselmo, Orígenes, Tomás de Aquino ou Agostinho, estariam hoje exercendo
ilicitamente a profissão.
A profissão parece ser promissora. Tão promissora quanto a destes outros vigaristas, os psicanalistas. Que pelo menos estão de acordo que é melhor não regulamentar a profissão, tantas são as escolas da psicanálise. É claro que a proposta dos pastores vai dar em nada.
Voltemos ao projeto do pedetista Giovani Cherini, que retoma os propósitos do senador bolchevique. Está tramitando em regime conclusivo e tem boas chances de ser aprovado pelas comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público, e de Constituição e Justiça. Se aprovado, vai imediatamente ao Senado – sem que o plenário se manifeste. Se passar, tanto Platão como Aristóteles, Kant como Descartes, não poderiam reivindicar a condição de filósofo neste país incrível. Filósofo, só com diploma de filósofo.
Mas o melhor vem agora. Lê-se no projeto: “De acordo com a proposta, órgãos públicos da administração direta e indireta ou entidades privadas, quando encarregados de projetos socioeconômicos em nível global, regional ou setorial, deverão manter filósofos legalmente habilitados em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços”.
O texto estabelece que só poderão exercer a
profissão os bacharéis em Filosofia. Ou seja, se um Estado quer construir uma
ponte, um aeroporto, uma ferrovia, uma estrada, que empregue antes de mais nada
um filósofo legalmente habilitado para dar palpites sobre a obra.
Sempre entendi como filósofo o homem que desenvolve um sistema filosófico. Que traz alguma resposta às questões que as épocas impõem. Se não trouxer resposta alguma, é mero solipsista. Filósofos, para mim, são Platão, Aristóteles, Hume, Bergson, Descartes, Kant, Hegel. (Nietzsche, eu o situo mais como poeta. Marx nunca foi filósofo, como pretendem os marxistas. Era jornalista e economista). Hoje, filósofo é qualquer professorzinho de filosofia.
A filosofia estilhaçou-se em mil pedaços e hoje duvido que alguém saiba definir, com precisão, em que consiste a filosofia. Pelo que vejo, filósofo é qualquer acadêmico que fala de maneira obscura sobre o homem e o mundo. O Brasil está cheio deles, todo santo dia surge nos jornais alguém se intitulando filósofo.
Em meus dias de Florianópolis, li uma ementa do curso de Filosofia da UFSC: História da Filosofia Catarinense. Sou um desinformado. Em nem sabia que existiam filósofos em Santa Catarina, quando na verdade já existia, pujante e fecunda, uma história da filosofia catarinense. A UFSC, se alguém não a conhece, é aquela universidade que conferiu um título de Dr. Honoris Causa a Fidel Ruz Castro. Dr. Fidel, portanto.
É possível que a moda tenha surgido na
França. Em meus dias de Paris, meus professores, ao examinar meu currículo,
exclamavam: “Ah, vous êtes philosophe”. Nada disso, professor, apenas estudei
filosofia.
Estudei História da Filosofia por quatro anos. Nestes estudos, considerei que filosofia é isto: alguém diz que o homem e o universo são assim e vão para lá. Surge outro e diz que o homem e o universo são assado e vêm para cá. A filosofia busca abstrações. Quer definir o que seja o Homem, assim com H maiúsculo. Ora, esse homem não existe. É como buscar o terno ideal que sirva a todos os homens e acaba por não servir a nenhum. O que existe é este homenzinho de todos os dias – com h minúsculo mesmo – que vamos encontrar... na literatura.
O saber racional acaba por negar-se a si mesmo. As filosofias se chocam e se destroem umas às outras. Os filósofos acabam se dando cotoveladas nas enciclopédias, em busca de espaço. Só a literatura permanece. Platão, por fascinante que seja, envelheceu. Já a Ars Amatoria, de Ovídio, permanece eternamente jovem. A vida é mais simples do que imaginam os filósofos. O homem nasce e morre e neste interlúdio esperneia. Fim de papo. A filosofia até pode ter pretendido ensinar o homem a viver. Mas a história está repleta de homens que bem conduziram suas vidas, sem nada entender de filosofia.
O filósofo, no fundo, é um palpiteiro. Os senhores deputados estão prestes a regulamentar a profissão de palpiteiro. O projeto do deputado, antes de ser absurdo, é obsceno. Visa empregar essa massa imensa de desempregados gerados pelas faculdades de Filosofia.
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