quarta-feira, 7 de março de 2012

GIGOLÔ DE DEKASSEGUI


Janer Cristaldo

Há mais ou menos um ano, denunciei uma nova vigarice que surgiu no mercado, a terapia do luto. Em entrevista no UOL, dizia Cissa Guimarães, atriz que optou pela terapia do luto após perder o filho no ano passado. "A terapia do luto foi fundamental para que eu conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano", diz a atriz. "Consegui isso com a ajuda terapêutica de Adriana Thomaz. Com ela, entendi melhor a morte, como fazer a conexão com o amor do meu filho e como reaprender a viver."

Essa, agora! Pelo jeito, o homem contemporâneo, apesar de milênios de evolução, ainda não aprendeu a lidar como o mais corriqueiro dos fatos humanos. Se a moda pega, os terapeutas do luto vão brotar como cogumelos após a chuva. Se cada vez que morre uma pessoa querida, temos de pagar um analista para enfrentar sua morte, o leitor pode ter uma idéia do baita mercadão que se abre aos gigolôs das angústias humanas.

No início do tratamento, o indicado é visitar o profissional duas vezes por semana. Conforme o progresso do paciente, as sessões se tornam semanais e, posteriormente, quinzenais - até que o paciente receba alta. E isto, obviamente, quem vai decidir é o terapeuta. De acordo com Adriana Thomaz, ainda existem poucos especialistas em luto no Brasil, e a maioria atua na capital paulista. Normal. São Paulo, com sua diversidade e incultura, é berço fértil para todos os engodos e crendices. Aqui nasceram as prósperas igrejas dos bispos Edir Macedo, R. R. Soares, apóstolo Hernandez, bispa Sonia et caterva. Grandes vigarices não vicejam em cidades pequenas.

Quando minha mulher morreu, coincidiu que na semana seguinte eu tinha consulta marcada com uma nefrologista. Ainda abalado, falei do acontecido e, inevitavelmente, chorei. “Quem sabe tu procuras um terapeuta?” – me sugeriu a médica. Quase perdeu o cliente. Eu passara minha vida toda denunciando essa malta de exploradores da fé dos incultos que, sem terem bem gerido suas vidas, dão-se ainda ao desplante de cobrar caro para gerir vidas alheias. No meu luto ninguém mexe.

“Equilíbrio”, o suplemento de auto-ajuda da Folha de São Paulo, anuncia hoje mais uma vigarice que, em falta de melhor definição, chamarei de gigolô de dekassegui.

O caminho de volta pode gerar depressão – diz a reportagem –. É a "síndrome do regresso", termo cunhado pelo neuropsiquiatra Décio Nakagawa para designar certo "jet lag espiritual" que aflige ex-imigrantes. Morto em 2011, Nakagawa estudava a frustração de brasileiros que voltavam ao país após uma temporada de trabalho em fábricas japonesas.

"A adaptação em um país diferente acontece em seis meses, já a readaptação ao país de origem demora dois anos", diz a psicóloga Kyoko Nakagawa, viúva do psiquiatra e coordenadora do projeto Kaeru, de reintegração de crianças que voltam do Japão.

Mais essa! Se todo migrante que volta precisa de tratamento psiquiátrico, os psiquiatras, psicólogos e psicanalistas terão dias dourados pela frente. Imagine o Ulisses fazendo análise ao voltar à Ítaca. Quando se viaja rumo a culturas distantes, há obviamente um choque, o confronto com o desconhecido. Quando fui para Estocolmo, em 1971, no Brasil ainda não existia metrô. Só viria a ser implantado em São Paulo em 74, e no Rio, em 79. Até o metrô constituiu um choque para mim. Chocou-me também ver que, em cada parada de ônibus, havia um letreiro dando a hora exata em que o ônibus parava naquele ponto. Isto também chocou Ayaan Hirsi Ali, a somali que foi deputada na Holanda. E choca qualquer pessoa que venha de país subdesenvolvido.

Na volta não há choque algum. Estamos voltando para o ecúmeno. Admito que uma criança que teve sua infância no Japão se choque ao chegar ao Brasil, afinal para ela o desconhecido é o Brasil. Mas barbado com “jet lag espiritual”, que me desculpe o dr. Nakagawa, isto é esnobismo de migrante que quer se fazer de vítima.

Conheço de perto essa gente, desde há muito. Ao referir-se a qualquer coisa do cotidiano nacional, exclamam: Ah! mas na Alemanha é diferente. Em Paris, é diferente. Em Londres, é diferente. Claro que é diferente, ou Alemanha não seria Alemanha, nem a França seria a França, nem o Reino Unido seria o Reino Unido. É o que chamo de germanite, galicite, albionite. Certa vez, ao apresentar minha biblioteca a uma dessas moças letalmente contaminada por uma germanite aguda, mostrei-lhe um dos volumes de minha Bompiani. “É grosso, é sólido, é alemão”, disse a enferma. Confesso que pensei em outra coisa... mas deixa pra lá.

Ao voltar de Estocolmo, quando entrei na Rua da Praia, foi como se jamais tivesse saído dali. Até escrevi um livro sobre a Suécia, acho que mais para convencer-me de que vivera lá. Em momento algum me senti depaysé. Voltei com alguns hábitos estranhos, é verdade, segue o relato logo após a crônica. Mas nunca senti jet lag espiritual algum.

Posso dizer o mesmo dos amigos brasileiros que fiz em Paris. Éramos sete. Uma morreu. Seis voltaram. Dois deles têm cidadania francesa, mas optaram por Rio e São Paulo. Este último tem um belo apartamento de três quartos em Paris – privilégio que não está ao alcance de qualquer francês – mas vive serenamente em um pequeno quarto-e-sala aqui em São Paulo, viajando duas ou três vezes por ano para visitar a família que ficou por lá.

A reportagem continua. Se ao sair do país o imigrante se cerca de cuidados para amenizar o choque cultural, no retorno a ilusão é de que basta descer do avião para se sentir em casa. "Retornar é uma nova imigração", diz a psicoterapeuta Sylvia Dantas, coordenadora do projeto de Orientação Intercultural da Unifesp. "A sensação é de que perdemos o bonde, estamos por fora do que deveríamos conhecer como a palma da mão."

Quando voltou do segundo intercâmbio no Canadá, o gerente de marketing Rafael Marques, 33, descobriu que havia ficado para tio: "Todos os meus amigos estavam casados, com outras prioridades. Demorei meses para me situar". Resultado: deprimiu. Recuperado, hoje ele trabalha com intercâmbios.

Ora, o mundo não pára. É claro que, ao voltar, quem ficou casou, teve filhos, progrediu profissionalmente. Enquanto você volta à estaca zero. Faz parte do jogo. Terá de recomeçar. Desta vez, com mais experiência e conhecimento de mundo. Mas não se queixe se, ao voltar, seu colega de ginásio é ministro enquanto você está desempregado.

Houve época em que havia uma grande distância entre Brasil e Primeiro Mundo. Quando jovem, alimentei uma pequena vaidade, a paixão por canetas-tinteiro. Na época em que viajei, até refil de caneta-tinteiro eu tinha de encomendar da Europa. Hoje, a distância diminuiu. Computadores, iPads, iPods e demais objetos do desejo contemporâneos são lançados quase simultaneamente, cá e lá. Jornais franceses ou espanhóis, eu os leio aqui em casa antes mesmo que o francês ou espanhol tenha saído para comprar pão. Falta alguma música e literatura, é verdade, mas para isso existe a Amazon.

Confesso que tive veleidades, quando jovem, de trocar definitivamente de país. Quando fui para a Suécia, minha intenção era não voltar. Foi quando descobri algumas coisas que os jornais, na época, não contavam. Em Estocolmo, tomei contato com uma palavrinha para mim pouco familiar: imigrante. Observei esta condição em meus dias no Norte. E decidi voltar. O imigrante, mesmo que obtenha passaporte do país para onde migrou, sempre será um cidadão de segunda classe.

Eu poderia fazer minha vida na Suécia como diskare – lavador de pratos – ou algo parecido – ganhando muito mais do que um jornalista no Brasil. Mas pensei com meus botões: melhor ganhar pouco como jornalista no Brasil do que ganhar muito como lavador de pratos em Estocolmo. Havia outra chance, casar com uma sueca. Mas seria algo desleal. Sem falar que a mulher que eu mais queria vivia aqui.

Mas volto à reportagem do suplemento de auto-ajuda da Folha: “Se a família também não ajudar, o ideal é procurar um psicólogo com formação intercultural. Em São Paulo, o núcleo intercultural da Unifesp dá orientação gratuita”.

A reportagem diz ao que vem, ampliar o mercado dos gigolôs das angústias humanas. A orientação é gratuita, diz o jornal. Certamente tão gratuita quanto os almoços que se dizem gratuitos. Temos agora um novo e promissor ramo na psicologia, o gigolô de dekasseguis. Ou de imigrantes, como quisermos. O mercado é vasto.

Morrer faz parte da vida. Quem não entendeu isto, não entendeu o que é viver. Voltar faz parte da viagem. Quem não entendeu isto, não entendeu o que é viagem.


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