terça-feira, 27 de fevereiro de 2018


A MIGRANTE PERDIDA
João Eichbaum
Sem sexo não há vida e sem vida não há sexo. Esse círculo vicioso preside a existência do gênero animal. É a regra básica, sem a qual a natureza animal estaria fadada ao aniquilamento. Para gáudio de toda a humanidade, sexo é, antes de tudo, uma exigência biológica, sacanagens à parte.
Para quem não sabe: a migração das andorinhas, por exemplo, é movimentada pelo sexo. As gônadas (glândulas sexuais) nelas se desenvolvem, se inturgescem, na primavera. Fantástico: a energia da primavera, que produz florescência no gênero vegetal, produz tesão nas aves. Aí, elas migram para reproduzir. Depois fogem do outono, prenúncio do inverno, que lhes nega condições de procriar.
Aqui no Rio Grande do Sul, já a partir de fins de janeiro elas costumam marcar o ponto para a viagem: sentem os ajustes metabólicos proporcionados pela glândula hipófise, anunciando iminente mudança da estação. Então se juntam nos fios de luz, no litoral, numa espécie de ensaio do cerimonial da longa viagem.
A gente se encanta com aquela organização, com aquela disciplina, com aquele espírito gregário. Primeiro, juntam-se poucas. Três, quatro, meia dúzia, com seu voo coreográfico, antes de pousarem nos fios. Mas, em pouco tempo, o grupo cresce e elas precisam ocupar muitos fios de luz.
De repente, um belo dia, nem sinal mais das andorinhas. Partiram, antes do raiar do dia, obedecendo às ordens da natureza, porque não têm deuses lhes apresentando tábuas de leis divinas, nem Igrejas, nem levitas a lhes soprar nos ouvidos que “sexo é pecado”, nem convenções sociais que lhes viram a cara.
Mas, como todas as regras, as da natureza também têm exceções. Aquela andorinha solitária que, ao cair da tarde, veio pousar no fio, onde suas companheiras se reuniam, tinha perdido o trem e parecia não ter se dado conta disso. Ficou ali, entregue ao abandono, imóvel, como uma criança perdida. E, quando dois pássaros de outra espécie sentaram no mesmo fio, ela, apavorada, voou, sem sequer bater as asas.
Voou, deixando no vazio a incerteza do seu destino. Voará sozinha? Terá forças para suportar a solidão de uma viagem sem fim? Desiludida da vida, por disfunção de suas gônadas, irá se entregar à própria sorte? Ou terá seu amor voado com outra, na direção daquele azul, onde o céu se confunde com o mar?


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