EMPULHAÇÃO DRAMÁTICA
Paulo Wainberg
Hoje vou falar sobre arte conceitual, assunto sobre o qual não entendo absolutamente nada.
Existem vantagens de se falar sobre coisas que não se entende, pode-se dizer qualquer coisa, usando-se a terminologia correta, e o mais desprevenido leitor pensará que está diante de um conhecedor, um entendido, um em quem se pode acreditar.
Eu, que só admito corrupção na cadeia e gosto de honestidade intelectual, coerência, congruência, bons costumes e sexo implícito, abri mão de todas essas vantagens, com a declaração contida na primeira frase acima.
Você, que está perdendo seu tempo lendo esta crônica, não será enganado.
Palavra de honra.
Fui assistir, neste – sem ironia – magnífico festival de teatro que anualmente se realiza em Porto Alegre, o POA em Cena, a peça chamada QUARTET, dirigida por Bob Wilson, festejado diretor de teatro, e protagonizada por não sei o que Hubert, magnífica atriz francesa, teatral e cinematográfica. Acho que é Catherine Hubert, mas não tenho certeza. E não faz diferença.
Para que melhor me entendam, esclareço que sou de um tempo em que teatro era coisa séria, isto é, a peça tinha um enredo, os atores desempenhavam seus papéis e representavam as personagens, mal abria a cortina as coisas começavam a acontecer, qualquer espectador entendia tudo, do começo ao fim.
Bons tempos aqueles.
Comecemos pelo título. A peça se chama QUARTET e tem cinco personagens.
Vai ver, o título é uma provocação de vanguarda, você vai assistir um quarteto, se é que QUARTET, em Francês, ainda significa quarteto, e logo de cara, na sua frente, surge um quinteto.
O cenário, à frente do palco, é composto por uma mesa longa e cinco cadeiras estilizadas, belamente iluminadas. Começa a música e cinco minutos depois você percebe, caminhando em câmera lenta, um vulto feminino surgindo da coxia. Ela leva outros dez minutos até chegar na parte iluminada, em frente à mesa, onde, qual um marionete, se queda estática. Do mesmo obscuro ponto, você percebe um homem, vindo na mesma direção, mais ao fundo outra mulher e ainda mais ao fundo, um velho, ainda mais ao fundo outro homem, todos caminhando em direção à mesa.
Outros quinze minutos.
Os quatro (será o quarteto?, você pensa) sentam-se no mais absoluto silêncio enquanto a marionete fica em pé, e ali permanecem por outros tantos imóveis minutos.
Para ter certeza e porque está sobrando tempo, você conta e reconta o número de personagens catatônicos à sua frente. Não tem jeito, são cinco!
Então o velho, na cabeceira, aponta um revólver para o rapaz na outra ponta da mesa, e atira.
O rapaz leva, em tempo subjetivo, uma hora e meia para cair. E, supostamente morto, sai andando de quatro, enquanto a marionete vai até ele em dezoito minutos subjetivos e sobe em suas costas.
O velho solta uma gargalhada sinistra, escurece tudo, outra meia hora subjetiva e ilumina-se o palco: uma mulher, sozinha, num sofá, magnificamente iluminado, começa a falar em francês (o espetáculo é francês) e você lê o que ela fala, na tela da legenda. Durante uns três dias, em tempo subjetivo, ela repete a mesma frase que a legenda traduz, cada vez mais rapidamente, mudando sutilmente a entonação, até que a legenda apaga, porque qualquer espectador, mesmo analfabeto, já decorou a frase que ela está repetindo e que, juro pelos seios da Catherine Deneuve, não faz o menor sentido.
Segue-se uma sequência interminável de cenas – esteticamente perfeitas – com referências a nomes e a títulos de nobreza, frases repetidas, repetidas, repetidas, repetidas, em diálogos incongruentes e, sem mais nem menos, um personagem late e uiva como um cachorro louco e a outra coaxa e pula como um sapo. Durante aproximadamente, em tempo subjetivo, uns seis meses e vinte e sete minutos, a sonoplastia produz sons: escarradas guturais, ruídos de objetos caindo, gotas pingando, as ondas do mar, trovoadas, farfalhares de panos e papéis, enquanto a virgem, que é sobrinha da marquesa dança, mostrando a bunda, na frente do rapaz que não se sabe quem é, peito de fora e super musculoso, e que se pendurou pelo pé numa forca, crucificando-se metaforicamente, de cabeça para baixo.
Mais adiante, ilustrando um diálogo extraordinário em que um diz para o outro quarenta e sete vezes: – Não te amo, mas quero tua pele, – desliza um aquário com dois peixinhos que, soube-se, tinham que ser pretos ou perder-se ia o efeito, dramático, suponho. Quando a sonoplastia oferece ao público um pop ritmado e o velho que no início deu um tiro entra dançando, trajando apenas uma camisola branca que mal lhe cobre as genitálias, acredito estar ali um clímax supremo, soberbo e superior, a ilustrar alguma coisa que a mente obscura do diretor não conseguiu extrair do seu inconsciente revelador e afrodisíaco.
Li, numa entusiasmada crítica de jornal, que o texto absurdo, sem nexo, sem sentido, sem coesão, sem relacionar uma frase com a outra para chegar a uma terceira conclusão a respeito de um episódio que sequer fora cogitado, é uma adaptação do filme “As Ligações Perigosas”, com a Glenn Close e o John Malkovich, onde ela o desafia a comer sua sobrinha virgem, interpretada pela Michelle Pfeiffer quando jovem, desafio que, infelizmente, nenhuma marquesa jamais me propôs.
Bem, depois que o crítico me contou isso, ficou tudo muito claro, duas horas em tempo real da mais absoluta chatice, incongruência, deboche intelectual, saudada como obra prima pela crítica e ovacionada de pé, com gritos e bravos da “inteligentzia” teatral culta, fazem sentido, afinal há uma origem para aquilo.
Na falta do que dizer, o crítico – como diria o Renan Calheiros – paroquial, elogiou a supremacia da estética sobre a emoção, para justificar a “revolução” dramática proposta pelo diretor e para explicar a absoluta falta de sentido, ou melhor, a espetacular falta de sentido jogada no colo da platéia que, por nada entender do que se passava, adorou!
Como se pode, honestamente, separar a estética da emoção?
Se considerarmos, academicamente, a estética com sendo a beleza da forma, como poderemos considerar “belo” o que não nos produz emoção?
Se o “belo”, no caso, for uma simples percepção do sentido da visão, há muito mais beleza num amanhecer do que num aparato cenográfico à base de luz e som a servir de pano de fundo para estereotipadas “tiradas de gênio” que provocam bocejos incontáveis e nenhum, mas nenhum estímulo racional e emocional.
Por isto, meu paciente leitor destas sextas-feiras primaveris, se você tiver oportunidade, não vá assistir ao QUARTET, não acredite no que lhe disserem os especialistas, seja mais confiante, acredite na sua sensibilidade e não tenha vergonha de não gostar do que é ruim.
Ah, não vou omitir o Grand Finale que jamais esquecerei, enquanto tiver memória:
Ela deitada no chão e uma voz feminina, monocórdia, repete setenta e duas vezes – depois perdi a conta: – A morte de uma puta. Finalmente só. Câncer. Meu amado.
Quero que você se imagine sentado na platéia, após duas horas, ouvindo essa frase repetida! Em seguida, a puta morta se levanta e caminha em direção ao painel todo branco, no fundo do palco e fica ali, parada, olhando para o branco e ouvindo: A morte de uma puta. Finalmente só. Câncer. Meu amado.
A platéia vem abaixo!
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