NOVA CARTA AO OSMAR
Paulo Wainberg
O Osmar, para quem não sabe, é o meu correspondente que não responde e não corresponde. Sei que ele tem cerca de sessenta e poucos anos, barrigudo, solteirão convicto – não gay – e bebedor de cerveja. Ouvi dizer que ele é torcedor do Internacional de Porto Alegre, mas não tenho certeza.
Você pode estranhar, afinal por quê escrevo para alguém que nunca me responde? Simples, minha querida, é que o Osmar é um personagem que inventei, um dos meus muitos, talvez, alter-egos.
E sempre tenho esperanças. Quem sabe um dia, devido a um desses fenômenos metalingüísticos e metafísicos, chega uma resposta do Osmar?
Mas, vamos à carta.
Meu queridíssimo Osmar.
Espero te encontrar em perfeita saúde e, se tiveres família: mãe e pai, tios, irmãos, desejo o mesmo para eles.
Você, assim, como eu, é das antigas, daquele tempo em que professor, na sala de aula, era autoridade e o tal de bulling, não ia além de simples gozações e brincadeiras perfeitamente assimiláveis, sem nenhuma violência física ou ameaças.
Ninguém, no nosso tempo, ia para o colégio com medo de apanhar, salvo discórdias pessoais e pontuais, por causa de uma guria. Aí sim, era bater ou apanhar, e a turma toda olhando e torcendo. E a guria? Apanhar na frente da guria? Exato, quando a gente apanhava, a guria era nossa!
Logo, o negócio era apanhar e depois, apoiado nas coxas dela, revelar que não era nada, aquela dor no nariz sangrando, e que estar ali, naquela posição, fazia o mundo luminoso.
Eu, por exemplo – e olha só a candura – pertencia à turma da Zona Norte, inspirada no gibi do Bolinha... Sentávamos no fundo da classe, fazíamos esculhambação e gozávamos com os CDFs da primeira fila.
E sabe por que? Porque eles eram os primeiros a levantar a mão para as respostas, os queridinhos dos professores, formalmente falando, porque tenho certeza que os professores gostavam mais de nós, os esculhambadores.
Recordo, Osmar, da rua da minha infância, a mesma em que hoje moro.
A gente se encontrava, no fim da tarde, uns vinte garotos, e jogávamos futebol na calçada. As goleiras eram pastas e arquivos escolares. A bola era qualquer coisa mais ou menos redonda que pudesse ser chutada. Quando tínhamos sorte, alguém tinha feito uma bola de meia. E o máximo: no Natal ou no aniversário de alguém, aparecia uma bola de couro, número cinco, que, em poucos dias, detonávamos com nossos duros sapatos escolares.
Raramente um carro interrompia o jogo. Quase sempre o motorista parava para assistir. Íamos até à noite e a partida só terminava quando as últimas mães nos chamavam, que era hora de ir para casa, tomar banho e jantar.
Hoje, Osmar, minha rua está mudada. Muitos edifícios no lugar das casas, carros passando sem parar e... nenhuma criança na calçada! Sabe pelo que as crianças foram substituídas, Osmar? Por cachorros. Na minha rua muitas pessoas e casais passeiam com seus cachorros.
Ninguém passeia com crianças.
Falando nisso, onde estão as crianças de nossa cidade, hein Osmar?
Sumiram das ruas. Estão confinadas nos colégios, nas escolinhas, nos condomínios fechados.
As ruas de minha cidade são freqüentadas por adultos sisudos, alegres, tristes, preocupados, satisfeitos, com pressa, angustiados e... nenhuma criança.
As ruas da minha cidade estão repletas de neuroses ambulantes, automóveis buzinantes, gente pobre e gente rica, nas calçadas, nos bares, no trânsito e... nenhuma criança, Osmar!
Qual é a graça de uma cidade sem meninos?, perguntou certa vez Carlos Drummond, numa de suas cariocas crônicas;
Sou, Osmar, do tipo sonhador e apegado às coisas. Estou sempre ligado às referências, às minhas referências do passado e do presente, como se fossem uma garantia para o futuro.
Ocorre que, enquanto o tempo passa, meu futuro diminui. Mas não desanimo, invoco a lei das compensações: o meu futuro diminui mas, em compensação, meu passado aumenta.
Não me incomodo com a diminuição do futuro. É a ordem natural, Osmar, acontece comigo, acontece contigo, acontece com todos.
Mas não tolero quando me subtraem o passado! Se o meu futuro diminui e arrancam pedaços do meu passado, o que restará então, que não seja chorar no banheiro?
Estudei, quando criança, na tenra infância do primário, numa escola na Avenida que, depois, foi desmanchada e transformou-se num ginásio, mais tarde num colégio, em outra Avenida, uma continuação da primeira.
Quiseram as minhas escolhas e os fados, que meus trajetos na vida percorressem essas duas avenidas que vi crescer, desenvolver, modificar, ampliar, melhorar e... piorar.
Por elas, diariamente, acostumei às referências que me mantinham e me mantêm integrado, fazendo parte, um ser social na melhor acepção do termo.
Vi os cinemas das minhas matines substituídos por edifícios; vi os bares da infância e dos sanduíches de presunto e queijo cederem espaços à lojas e imobiliárias. Vi o local da antiga escola transformar-se em estacionamento descoberto, o ponto da esquina, do bilhar e das trocas virar ponto de venda de maconha, vi o grande parque iluminar-se e apagar-se várias vezes, vi de tudo, indo e vindo por aquelas avenidas que me faziam celebrar uma cidadania conformada, porém, confortada.
Na poeira dos tempos tudo mudou, salvo duas coisas: a papelaria e a loja de roupas femininas.
Elas sobreviveram às mudanças, continuaram ostentando sua permanência afirmativa, a mostrar que os velhos tempos não morreram de todo, que os novos tempos estavam de acordo, desde que elas permanecessem, um marco histórico da minha existência.
Mal as via, a papelaria e a loja, quando passava de carro na ida e na volta, mas sabia que elas ali estavam e isto era suficiente.
E então, Osmar, há mais ou menos não sei quando, fecharam a loja!!!
Foi assim, de repente, ontem ela estava lá com seu luminoso e suas vitrines coloridas e, sem mais menos, no dia seguinte, as vitrines fechadas, a porta fechada e um grande cartaz na porta: “Aluga-se”.
Foi-se a metade das minhas referências infantis, adolescentes, juvenis e adultas.
Fecharam a loja, Osmar!
Ninguém me avisou, ninguém me perguntou, não me pediu licença e, com a fria indiferença das novas gerações, me deixaram à deriva, não há dia que eu passe por ela sem uma dor no coração.
Por ser do meu direito, fui reclamar! Fui me queixar!
Em vão, Osmar. A minha referência não existe mais, restou-me apenas a papelaria e, me pergunto, por quanto tempo?
Amanhã, daqui a uma semana, daqui a seis meses, passarei por ela e ela estará fechada também, apagando para sempre os vestígios das minhas brincadeiras de criança, dos meus passos adolescentes em busca das namoradas, das marcas de pneu dos meus carros no meio da rua, da minha certeza no infinito significativo de uma vida que se mostra cada vez menor, das memórias sugestivas de pessoas que nelas viveram, agiram, atuaram, foram importantes e que não eram para, jamais, serem esquecidas.
Encurtam-se o futuro. Arrancam-me o passado. O que sobra, Osmar, para justificar minhas glórias, meus amores, meus afetos?
Dizem que saber perder dignifica e fortalece o caráter. Será?
Quanto mais me tiram as referências, Osmar, mais percebo que estou por minha conta, que sobram poucos a quem apelar, que, no fim das contas, está acontecendo comigo o que acontece com todos e que, por mais que tenha pretendido, não sou nada especial, não sou nada diferente.
E, o que é pior, Osmar. Caso eu, como todo o mundo, seja uma referência para as gerações que chegam, também deixarei de ser, por obra e graça de outros interesses, de outros significados sobre os quais não terei ingerência, sobre os quais nada poderei fazer.
Nem, ao menos, opinar.
Em resumo, meu caro Osmar, estou triste, entristecido, muito, muito triste.
Percebo que não sou mais um agente modificador. Não passo de um sujeito à mercê de novas modificações. E não me resta outra coisa a não ser aceitar.
E ficar triste, como nunca fiquei.
É por isso, caro Osmar, que lhe escrevo e que sonho com uma resposta sua que, como já sei, não virá.
Mas não desisto.
Um abraço do, sempre seu,
HAROLDO.
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