terça-feira, 10 de janeiro de 2017

QUANDO DEUS SE DISTRAI, O CAPETA ENTRA EM CENA

João Eichbaum

Foi dar com o rabo do olho no mancebo de apuradas feições, a veneranda madame, de cabelo caju protegido contra a neve da idade, emitiu o nome de Jesus como jaculatória, por ter sentido uma coisa estranha, um rebuliço interior, que balanceava entre um sopro no coração e um orgasmo múltiplo.

Bem treinado nas artes de bom falar, expelindo adjetivos e advérbios, para evitar que substantivos mal interpretados o obrigassem a desmanchar dúvidas, o mancebo, de feições apuradas e um olhar de arranca-coração, estava se apresentando como padre àquela senhora, encarregada das chaves da igreja.

Então era aquela a criatura enviada por Deus para prestar os serviços de missa, confissões e demais sacramentos na capela da praia Presidente? Desde que Deus levara seu marido a conhecer as belezas do céu, a distinta viúva nunca tivera a ventura de ver um padre tão vistoso, de falar tão doce e de olhar tão escorreito como aquele. Não teve o mínimo repuxo de dúvida: entregou as chaves ao ministro de Deus.

Tão logo o mancebo instalou no altar aquela ostentação da natureza, que era sua pessoa, todas as beatas senhoras acenderam os olhos, ao mesmo tempo em que desencravavam suspiros, trancados há muito tempo lá no fundo. Aquele padre era uma obra muito bem acabada de Deus, pomposo, homem de fazer vista, figura de não caber em missa de sétimo dia.

Terminada a missa, se estabeleceu a fila do beija-mão do homem de Deus, com pedidos de confissão. O padre foi todo ouvidos. Sentou-se no confessionário com pose de santo e foi abrindo os tímpanos para ouvir sussurros de pecados, pecadilhos e outras confidências de maior calibre, não descuidando de salivar conselhos.

Mas, um ministro da eucaristia que, com medo do Lava a Jato do Juízo Final, também fora debulhar seus pecados nos ouvidos do padre, coçou uma pulga atrás da orelha: ficou cheio de ave-marias e pai-nossos por rezar a título de penitência, mas não recebeu aquele sinalzinho básico de absolvição das culpas.

Ele, que iniciara sua carreira como anjo de procissão e por isso era escolado em ritos, rezas e outros negócios de sacristia, resolveu desovar nas orelhas do presidente da comunidade a suspeita de que o aparecido na paróquia não tinha jeito de quem havia sido remetido por Deus. Então, pelo sim, pelo não, foram ao padre e lhe requereram carteira de identidade, com assinatura do bispo, selo da mitra e tudo o mais.


Com a desculpa de que ia pegar a identidade na casa da viúva onde se hospedara, o padre tomou outro rumo. Sumiu, escafedeu-se, para não ser vistoriado. Desapareceu e deixou como legado aos maridos a tortura de não saberem que pecados suas mulheres lhe haviam deitado nos ouvidos.

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