Em meus dias de universidade, li um estudo interessante de epistemologia sobre a interferência humana no conceito de acaso, de autoria de dois pensadores franceses, cujos nomes não mais lembro. Acaso é o imprevisível. Suponhamos que um belo dia se arma uma tempestade em Paris, fenômeno perfeitamente previsível pelos serviços de meteorologia. A tempestade produz um vendaval, coisa também previsível. O vendaval derruba uma telha de um telhado, algo também bastante previsível. A telha cai sobre uma pedra na calçada. Não falamos de acaso.
Mas digamos que M. Dupont estava com dor de dente e marcou no dia da tempestade uma consulta com um dentista. Providência mais do que previsível, necessária. M. Dupont vai a pé, já que seu dentista não fica longe de sua casa. Ao passar pelo prédio que foi destelhado, a telha cai sobre sua cabeça. Aí falamos em acaso. É a interferência imprevisível de duas séries de fenômenos, estes perfeitamente previsíveis. Mas depende da presença do ser humano. Sem ser humano no meio, não há acaso.
Costumo falar do único deus em que creio, o deus Acaso. Leitora me pergunta que deus é esse. É o deus do qual falei acima, o que derruba telhas na cabeça dos transeuntes. É o deus que tem regido minha vida. É deus geralmente generoso, que trata bem os que nele crêem. Se um dia saí das grotas do Upamaruty e Ponche Verde a correr mundo e hoje vivo em São Paulo, tudo é obra de sua vontade imperiosa.
Sua primeira ação em minha vida ocorreu há mais de meio século. Já contei, conto de novo. Eu tinha dez anos e estudava numa escola rural de Três Vendas, distrito de Dom Pedrito, situada justo na Linha Divisória. De um lado da estrada, Brasil. Do outro, o Uruguai. No quinto ano primário, com escassas noções de história ou geografia, fomos informados que professoras "da cidade" viriam fiscalizar as provas. Pânico total de nossas professoras.
Fora escrever e as quatro operações, mais alguns poemas cívicos, ninguém conhecia muita coisa além disso. Mas para tudo há solução. As provas chegaram numa sexta-feira. Numa época em que sequer havia rádio na região, fomos todos convocados – sei lá como, suponho que à pata de cavalo – num raio de léguas, para uma aula no domingo. Violadas as provas, recebemos as respostas para decorar.
Dia seguinte, as fiscais de Dom Pedrito constatavam, boquiabertas, a excelência pedagógica de nossas mestras. Os alunos escreviam tranqüilos, sem hesitar um segundo, foi nota dez pra todo mundo. Minha mãe era professora e claro que cúmplice. Mas não muito. Sempre exibiu uma vara de marmelo quando eu me recusava a estudar. Não só exibia como tampouco foi avara ao aplicá-la. Naquela segunda-feira, minha sorte estava selada. Findo o curso primário, bom em matemática, o máximo que podia aspirar era ser caixeiro nalgum bolicho das Três Vendas ou Ponche Verde, uma das poucas chances de escapar ao rabo do arado. Findas as provas, atrelei o tordilho à aranha. Uma fase havia terminado em minha vida. Voltava ao campo, talvez para lá morrer.
Dei de rédeas ao tordilho, a aranha já descia o lançante da coxilha. Foi quando Dona Ivone Garrido, a fiscal implacável, já de certa idade e não muito ágil, atravessou um alambrado de sete fios que cercava o colégio e gritou: "pára, Clotilde, teu filho é um gênio, ele não pode voltar para o campo". Minha mãe, que só queria ouvir isto, me tomou as rédeas das mãos e esbarrou o tordilho. Daqueles segundos geridos pelo deus Acaso – e aqui começa o mistério – decorrem minhas andanças e estas linhas.
Depois daquela distante manhã, a roda do acaso não parou mais de rodar. Certa vez, ao entrar em um escritório da Varig, em Amsterdã, uma mulher linda envolta em peles e com uma chapka lhe abrigando os cabelos me abraçou com carinho. Nossa, pensei, a Varig está fazendo de tudo para captar clientes. Nada disso. Era uma atleta carioca que passara duas ou três noites em meu apartamento em Porto Alegre, durante uns jogos universitários. Marcamos encontro em Genebra. Não deu certo. O deus Acaso não gosta de coisas combinadas.
Em Estocolmo, em 71, quando saía de meu curso de sueco, no Kungsträdgården, praça que em língua de gente quer dizer Jardim do Rei, encontrei em meio às neves uma gaúcha com a qual eu começara um namorico em Tramandaí, uns quatro ou cinco anos antes. Em Madri, ao sair de um meus botecos prediletos, o Gijón, tropecei com um bom amigo, um professor de história uruguaio da UFSC, Aníbal Aicardi Abadie. Continuamos normalmente uma charla interrompida alguns anos antes em Florianópolis. Repeti o que dissera fray Luís de León, em meados do século XVI, ao retomar sua cátedra na universidade de Salamanca, após cinco anos de prisão pela Inquisição: como decíamos ayer... Marcamos encontro em Barcelona. Também não deu certo.
Meu doutorado dependeu de obra de acaso. Eu ganhara uma bolsa de mestrado em Paris. Estava em uma fila na Sorbonne para inscrever-me no curso, quando encontro na fila M. Raymond Cantel, doyen da Sorbonne, que eu conhecera alguns anos antes. Perguntou-me que fazia ali. Estou me inscrevendo para um mestrado, professor. M. Cantel foi o responsável pelos estudos de literatura de cordel na universidade francesa. Veio ao Brasil em busca de traços de uma seita sebastianista. Não a encontrou. Mas voltou com dois mil livrinhos de cordel na bagagem. “Que é isso, meu filho? Tens currículo mais que suficiente para um doutorado. Te inscreve em doutorado”. Em questão de minutos, e por obra do deus Acaso, meu mestrado se transformou em doutorado. De minha banca, participou M. Paul Verdevoye. Tradutor de Martín Fierro ao francês, poema que embalou minha infância nos dias de Upamaruty.
Minha filha, de certa forma, é também obra do deusinho. Nasceu em Porto Alegre. Mas diria que foi gestada em Cannes. Eu fazia a cobertura de um festival de cinema e passava minha coluna por telefone. Quem a recebia era uma jornalista da Caldas. Daí surgiu a Primeira Namorada.
Naqueles dias de Paris, assinei crônica diária na Folha da Manhã, de Porto Alegre. Ao final da coluna deixava meu telefone e endereço. Correspondi-me com muitos leitores, mais precisamente leitoras. Entre elas uma advogada muito querida de Santa Maria. Trocamos fotos. Em abril de 1979, tive de voltar rapidamente ao Brasil. Encontrei-a ao tomar um ônibus para Santa Maria. Ela reconheceu-me pela foto. E ali mesmo, no ônibus, começou uma relação que dura até hoje.
Ano passado, fui visitá-la em Porto Alegre. Ela morava na Fernandes Vieira. Certo dia, ao sairmos de sua casa, me deparei com um restaurante na mesma quadra, o Zero de Conduta. Este cara já morou em Paris, disse a ela. Aí a seqüência causal é mais complexa.
Em meus dias de Filosofia, tive aulas por quatro anos com Gerd Bornheim, intelectual bastante conhecido em Porto Alegre nos anos 60. Foi cassado pelos militares em 69. Em 71, em minha primeira visita a Paris, hospedei-me no Grand Hotel Saint Michel, na rue Cujas, ao lado da Sorbonne. De Grand o Saint Michel nada tinha, era apenas um une étoile muito freqüentado por brasileiros, e gerido pela folclórica Madame Salvage. Consta que, em seus 70 anos, ela punha um cartaz na porta de seus aposentos:GENEZ PAS! JE SUIS EN TRAIN DE FAIRE L’AMOUR
Certo dia, ao voltar de madrugada, quando fui pegar a chave, ergue-se de um catre uma calva ilustre e familiar. Era o Gerd, que trabalhava como porteiro da noite. Este foi o primeiro elo da corrente. Convidou-me para uma janta no dia seguinte. Fomos no Zero de Conduite, ali perto na Monsieur le Prince. O restaurante fazia homenagem ao filme homônimo de Jean Vigo e hoje não mais existe. Foi meu primeiro restaurante em Paris, onde tomei contato com esse delicioso queijo grego, o fetá. Ora, um Zero de Conduta em Porto Alegre só podia ser obra de quem vivera em Paris nos anos 70.
Antes de ir adiante, mais uma manobra do deus Acaso no Zero. O restaurante tinha uma grande mesa de madeira, para umas vinte pessoas, na qual os clientes iam sentando ao lado uns dos outros. Minha tese era sobre Ernesto Sábato. Certo dia, estou em meio a um pichet de rouge, relendo Sobre Heroes y Tumbas. A minha frente, senta-se uma menina com El Tunel em punho. Ali mesmo começou nossa relação. Era uma adorável poeta peoniana, tão altiva quanto seu conterrâneo, Alexandre, o Grande. Acabei por dedicar-lhe minha tese. Naquele almoço, o deusinho malandro estava agendando minhas futuras viagens a Dubrovnik, Skopje e Mljet.
Volto a Porto Alegre. Dois ou três dias depois, entrei no Zero de Conduta para uma cerveja. A bem da verdade, nem havia notado que era o Zero de Conduta. Havia uma pequena biblioteca no restaurante, onde encontrei vários livros em sueco, principalmente de culinária. Fui até o caixa. Quem fala sueco aqui?
- Jag – me respondeu o caixa.Havia morado cinco anos em Estocolmo. Naqueles dias, eu estava publicando neste blog, em capítulos, minha tradução de Kalocaína. Falei de meu blog e passei-lhe meu cartão.
- Ah, és o Janer. Estive em teu apartamento em Paris.Ele também estivera por lá, o nome de seu restaurante o atestava. Era o Marcos Estivalet, que me visitara com um jornalista gaúcho, o Alfredo Fedrizzi, naqueles distantes anos 70, em meu studio na Brillat Savarin.
Mas comecei prometendo falar de meu apartamento. Deste onde moro desde 2001. Aqui a série causal é também complexa. Começa, eu diria, nas ilhas gregas. Lá por 77 ou 78, eu navegava de Mykonos para Santorini. Eram dias em que eu não queria ver brasileiro por perto. Não havia ido para Paris para conviver com os patrícios. Foi então com certo horror que vi, em pleno Egeu, a Baixinha conversando com um casal de brasileiros.
Vai daí que acabamos nos relacionando. Graças a eles, entrei em contato, em Paris, com os brasileiros da Maison du Brésil. Graças a eles, encontrei também amigos com os quais mantive bom convívio. Entre estes, Silvia Ricardino, harpista. Que acabou voltando a São Paulo, cidade em que, na época, eu jamais imaginava morar.
Hoje, cá estou. Quando me mudei para cá, falava para minha amiga harpista de meu novo endereço. Moro na São Vicente de Paula, naquele prédio de tijolinhos. No prédio de tijolinhos? Muito freqüentei aquele edifício. Em que andar?
- Oitavo.
- Oitavo? Não pode ser. Eu freqüentava um apartamento no oitavo. Em qual bloco?
- No bloco frente à portaria, nos fundos.
Era o mesmo apartamento que ela freqüentava, quando sequer imaginava que um dia viveria em Paris. Um dos proprietários deste apartamento foi um dentista, não diria melômano, mas que cultivava a música erudita e reunia em torno a si os cultores da boa música. Convidei então a Sílvia a voltar a seus dias de juventude.
Ora, direis, a vida é isso mesmo, uma seqüência de acasos. Pode ser. Mas penso que acaso exige distância. Cruzar todos os dias com os vizinhos de seu bairro não vale. Não está na faixa do acaso, mas da necessidade. O mesmo se você vive em uma pequena cidade e nunca saiu dela. Vai cruzar todos os dias pelas mesmas pessoas. Destas andanças, extraí uma lei, que chamo de a Lei de Cristaldo: todos os encontros são possíveis. Desde que você não permaneça parado no mesmo lugar.
Meus atuais vizinhos de parede-meia são um maestro e uma mezzo soprano. Muitas vezes acordo com os trinados da moça. Tens sorte que não é uma soprano, me adverte a Sílvia. Pode ser. Mas penso que nada teria contra uma soprano.
Se meu apartamento falasse, muita música teria a contar.
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