Lá pelos anos 70,
fui quase um militante da Feira do Livro de Porto Alegre. Sempre a divulguei em
minha coluna na Folha da Manhã, dela participei em tardes de autógrafo e sempre estava lá
nos finais de tarde. Era uma feira pequena, sem som nem promoções outras que
não o livro, que propiciava encontros entre escritor e leitor. Pessoas do
interior do Estado vinham com malas para aprovisionar-se de leitura para o ano
todo.
Minhas tardes de autógrafo tinham um encanto especial. Eu tinha muito carinho pelas profissionais que freqüentava e sempre as convidava para os meus lançamentos. Alheias àquele universo, elas não imaginavam que tinham de comprar o livro. Esperavam um presente. Resignado, eu sempre tinha uma boa dúzia de livros sob a mesa para regalos. Como as sessões eram geralmente à tardinha, elas vinham já vestidas para o trabalho, o que dava um colorido um tanto exótico à fila. Sentiam-se honradas sendo convidadas para um lançamento de livro e eu me sentia muito bem ao honrá-las.
Minhas tardes de autógrafo tinham um encanto especial. Eu tinha muito carinho pelas profissionais que freqüentava e sempre as convidava para os meus lançamentos. Alheias àquele universo, elas não imaginavam que tinham de comprar o livro. Esperavam um presente. Resignado, eu sempre tinha uma boa dúzia de livros sob a mesa para regalos. Como as sessões eram geralmente à tardinha, elas vinham já vestidas para o trabalho, o que dava um colorido um tanto exótico à fila. Sentiam-se honradas sendo convidadas para um lançamento de livro e eu me sentia muito bem ao honrá-las.
Com o tempo, a feira
foi crescendo. O número de lançamentos também. Fatores estranhos ao livro
tomaram conta da praça. Foi instalado um arremedo de bar, que servia cerveja
choca em copos de plástico. Mais um sistema de som. E um palco para
apresentação de grupos e de teatro infantil. (Que tem a ver teatro infantil com
livros?). Diversas organizações começaram a tirar casquinha da feira. Políticos
a invadiram, em busca de visibilidade e votos. Eu já vivia longe de Porto
Alegre, mas sempre voltava quando floriam os jacarandás da Praça da Alfândega.
O gigantismo do que havia sido uma festa do livro afastou-me da feira. Deixei
de voltar a Porto Alegre para visitá-la e mais: procuro evitar Porto Alegre
nessas ocasiões. A cidade me traz recordações que machucam.
Em 95, fui convidado
a fazer uma palestra na PUC gaúcha, sobre Camilo José Cela. Fui feliz a Porto
Alegre, eu havia traduzido A Família de Pascual Duarte e Mazurca para Dois Mortos. O primeiro, a novela mais difundida na Espanha
depois do Quixote, o segundo, um passeio pela Galícia espanhola, ao ritmo de
uma estranha melodia, só ao alcance de quem curte a música das palavras. Cela,
Nobel de 89, receberia um doutorado honoris causa na universidade e eu matava
três ou quatro coelhos de uma só cajadada: revia meus amigos, revisitava a
feira, conhecia o autor galego e fazia palestra sobre uma literatura que me
fascinava.
Assim aconteceu. Mas um episódio empanou meu entusiasmo. Cela deu uma tarde de autógrafos na Feira. Formaram-se filas imensas ante o escritor, que teve de interromper os autógrafos, duas ou três horas depois, por estar com câimbras nos dedos. Foi quando tive uma triste percepção do universo dos leitores. Aquela multidão toda, que fazia fila como russos diante de um McDonald’s, não sabia se Cela era açougueiro ou alfaiate. Estavam ali para receber o autógrafo de um prêmio Nobel. A feira havia transformado um grande autor em uma celebridade qualquer. Alguns anos mais tarde, Paulo Coelho poluiu a Praça da Alfândega. De novo, filas quilométricas. Há um tipo de leitor para quem Coelho ou Cela têm o mesmo peso. São famosos e basta. Não importa o que tenham escrito. Mesmo quando compra um bom livro, este leitor nem sabe o que está comprando.
Assim aconteceu. Mas um episódio empanou meu entusiasmo. Cela deu uma tarde de autógrafos na Feira. Formaram-se filas imensas ante o escritor, que teve de interromper os autógrafos, duas ou três horas depois, por estar com câimbras nos dedos. Foi quando tive uma triste percepção do universo dos leitores. Aquela multidão toda, que fazia fila como russos diante de um McDonald’s, não sabia se Cela era açougueiro ou alfaiate. Estavam ali para receber o autógrafo de um prêmio Nobel. A feira havia transformado um grande autor em uma celebridade qualquer. Alguns anos mais tarde, Paulo Coelho poluiu a Praça da Alfândega. De novo, filas quilométricas. Há um tipo de leitor para quem Coelho ou Cela têm o mesmo peso. São famosos e basta. Não importa o que tenham escrito. Mesmo quando compra um bom livro, este leitor nem sabe o que está comprando.
Soube, ano passado,
que meu comunicado na PUC foi “esquecido” na edição da revista que reuniu as
palestras do evento. Pelo jeito, até quando presto uma homenagem constranjo.
Não sei exatamente quais foram as razões que levaram a esta censura. Mas
suponho ter sido o fato de afirmar que Cela militou na Falange franquista. E
jamais se arrependeu disso. Mas o Nobel transfigura seus contemplados. Na mesa
coordenadora das palestras, havia até velhos comunistas prestigiando o soldado
de Francisco Franco.
A moda das feiras se espalhou pelo Rio Grande do Sul e cada cidadezinha, mesmo não tendo livrarias, passou a ter uma feira do livro. Visitei algumas, por acaso. São tristes. Como não há livreiros locais que as abasteçam, encomendam livros de Porto Alegre. As livrarias mandam o que vende mais, os best-sellers. Nessas feiras, dificilmente você vai encontrar literatura que preste. De modo geral, só best-sellers e livrecos de autores locais. De algum advogado que se julga escritor só porque redige petições, ou de alguma poetisa que põe no papel suas angústias de menopausa. Mais um stand de livros evangélicos e outro de livros espíritas. E o resto é silêncio.
As feiras do livro viraram feiras de vaidades. Isto é herança de um passado ainda recente, no qual o escritor é um personagem mítico. Estes dias estão terminando. Há escritores que se gabam de ter escrito quarenta ou mais livros, e não somos capazes de citar um só título. Dois exemplos: alguém já ouviu falar de Josué Montelo? Pessoa da minha idade, talvez. Pois o homem escreveu mais de cem livros e dele não lembramos título algum.
A moda das feiras se espalhou pelo Rio Grande do Sul e cada cidadezinha, mesmo não tendo livrarias, passou a ter uma feira do livro. Visitei algumas, por acaso. São tristes. Como não há livreiros locais que as abasteçam, encomendam livros de Porto Alegre. As livrarias mandam o que vende mais, os best-sellers. Nessas feiras, dificilmente você vai encontrar literatura que preste. De modo geral, só best-sellers e livrecos de autores locais. De algum advogado que se julga escritor só porque redige petições, ou de alguma poetisa que põe no papel suas angústias de menopausa. Mais um stand de livros evangélicos e outro de livros espíritas. E o resto é silêncio.
As feiras do livro viraram feiras de vaidades. Isto é herança de um passado ainda recente, no qual o escritor é um personagem mítico. Estes dias estão terminando. Há escritores que se gabam de ter escrito quarenta ou mais livros, e não somos capazes de citar um só título. Dois exemplos: alguém já ouviu falar de Josué Montelo? Pessoa da minha idade, talvez. Pois o homem escreveu mais de cem livros e dele não lembramos título algum.
Segundo exemplo: li
há pouco que participou – ou participará – da feira do livro de Bogotá a
escritora e imortal da Academia Brasiliense de Letras, Margarida Patriota,
autora de 26 livros. Alguém consegue citar algum sem uma busca no Google?
Duvido.
A profissão de escritor se dessacralizou, só não percebem isto escritores de província. Neste sentido, o ebook é bem-vindo. Hoje, se alguém quer publicar um livro, não precisa de editor, distribuidor ou livreiro. Basta colocar seu texto em formato eletrônico e jogá-lo na rede. O fetiche do livro publicado em papel só tem vez nas feiras do livro e programas governamentais de leitura.
A propósito, acabo de ler que a Fundação Biblioteca Nacional terá 330 milhões de reais para investir em programas do livro. Parte dessa grana servirá para a contratação de quatro mil agentes de leitura, realização de mais de 500 encontros com autores no projeto Caravana de Leitura, apoio a 200 pequenas e médias feiras.
Traduzindo: cabide de empregos, turismo gastronômico e financiamento de feiras onde pavões irão exibir suas plumas. Que faz um agente de leitura? Não tenho idéia. O máximo que posso conceber é alguém que segura o livro enquanto você lê.
Sobre a crônica passada, leitores me advertem que Gabriel, o sedizente pensador, não é roqueiro. Mas rapper. Segundo outros, é pop. Ou talvez hip hop. Que seja. Pertence a essa raça que saltita no palco enquanto rasca guitarras para uma platéia de anencéfalos que juntam as mãos sobre a cabeça? Então é similar.
Só mudam as moscas. Mantenho o título da crônica.
A profissão de escritor se dessacralizou, só não percebem isto escritores de província. Neste sentido, o ebook é bem-vindo. Hoje, se alguém quer publicar um livro, não precisa de editor, distribuidor ou livreiro. Basta colocar seu texto em formato eletrônico e jogá-lo na rede. O fetiche do livro publicado em papel só tem vez nas feiras do livro e programas governamentais de leitura.
A propósito, acabo de ler que a Fundação Biblioteca Nacional terá 330 milhões de reais para investir em programas do livro. Parte dessa grana servirá para a contratação de quatro mil agentes de leitura, realização de mais de 500 encontros com autores no projeto Caravana de Leitura, apoio a 200 pequenas e médias feiras.
Traduzindo: cabide de empregos, turismo gastronômico e financiamento de feiras onde pavões irão exibir suas plumas. Que faz um agente de leitura? Não tenho idéia. O máximo que posso conceber é alguém que segura o livro enquanto você lê.
Sobre a crônica passada, leitores me advertem que Gabriel, o sedizente pensador, não é roqueiro. Mas rapper. Segundo outros, é pop. Ou talvez hip hop. Que seja. Pertence a essa raça que saltita no palco enquanto rasca guitarras para uma platéia de anencéfalos que juntam as mãos sobre a cabeça? Então é similar.
Só mudam as moscas. Mantenho o título da crônica.
COTAS SOCIAIS
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