Sobre os prazeres da teologia:
QUANDO UM I DIVIDE A IGREJA
JANER CRISTALDO
Volto a meus prazeres diletos, as discussões teológicas. Em Marcos, por
exemplo, Cristo morre às 9h da manhã, no dia do Pessach, a manhã seguinte à
refeição do Pessach. Em João, Cristo morre um dia antes, no dia da preparação
do Pessach, em algum momento depois do meio-dia. Isto é o de menos. Bart D.
Ehrman, em quem colho estas incongruências, apresenta uma bateria de outras que
mostram a discrepância dos quatro evangelhos. Em Jesus, interrupted, traduzido
no Brasil com o rebarbativo título de Quem
foi Jesus? Quem Jesus não foi?, o autor pergunta:
- Quem realmente foi ao túmulo? Apenas Maria (João 20:1)? Maria e outra Maria
(Mateus 28:1)? Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé (Marcos 16:1)? Ou
mulheres que tinham acompanhado Jesus da Galiléia a Jerusalém – possivelmente
Maria Madalena, Joana, Maria mãe de Tiago e “outras mulheres” (Luca 24:1 ver
23:55)? A pedra realmente havia sido roladas da entrada da tumbas (como em
Marcos 16:4), ou foi rolada por um anjo quando as mulheres estavam lá (Mateus
28:2)? Quem ou o quê elas viram lá? Um anjo (Mateus 28:5)? Um homem jovem
(Marcos 16:5)? Dois homens (Lucas 24:4)? Ou nada e ninguém (João)? E o que foi
dito a elas? Para mandar os discípulos irem “para a Galiléia”, onde Jesus os
encontraria (Marcos 16:7)? Ou para recordar que Jesus tinha dito a elas
“enquanto estavam na Galiléia” que teria de morrer e nascer novamente (Lucas
24:7) Depois as mulheres contam aos discípulos o que viram e ouviram (Mateus 28:8)
ou não contam nada a ninguém (Marcos 16:8)? Se elas contam a alguém, a quem é?
Aos 11 discípulos (Mateus 28:8)? Aos 11 discípulos e a outras pessoas (Lucas
24:8)? A Simão Pedro e a outro discípulo não identificado (João 20:29)? Qual é
a reação dos discípulos? Não reagem, porque o próprio Jesus aparece
imediatamente a eles (Mateus 20:9)? Não acreditam nas mulheres, porque parece
um “desvario” (Lucas 24:11)? Ou vão até a tumba ver com os próprios olhos (João
20:3)?
E durma-se com um barulho destes.
Ehrman tem uma trajetória curiosa. PH.D. em teologia pela Universidade de
Princeton e professor de estudos religiosos na Universidade da Carolina do
Norte, saiu de biblioteca em biblioteca mundo afora, para conferir não os
originais dos textos sagrados, que não existem mais – nem mesmo suas cópias,
que tampouco existem – mas as cópias de cópias de cópias que ainda restam.
Disto resultou um primeiro livro, Misquoting
Jesus: the Story behind Who changed the Bible and Why, traduzido como O que Jesus disse? O que Jesus não
disse?.
Se antes acreditava que a Bíblia era a palavra de Deus, Ehrman descobriu que
sua elaboração era humana e muito humana – com todas as deficiências de uma
obra humana. E perdeu a fé. Seu itinerário foi mais ou menos o meu. Perdi a fé
lendo a Bíblia. Mas não perdi meu tempo em bibliotecas comparando cópias
antigas. Bastou-me o texto, mesmo traduzido.
Ehrman propõe uma leitura não vertical da Bíblia, começando no início de cada
livro e indo até o fim. Mas uma leitura horizontal, isto é, você lê uma
história em um dos evangelhos, depois a mesma história em outro Evangelho, como
se tivessem sido escritas lado a lado, em colunas. E você compara as histórias
cuidadosamente, em seus detalhes. Não há fé que resista a tal leitura. A Bíblia
torna-se um livro muito humano, organizado por editores sem preocupação alguma
com a coerência.
Ainda há pouco, falei sobre os corpos de santos que foram ressuscitados,
segundo Mateus, por ocasião da crucificação do Cristo. Os demais evangelistas
não voltam a falar deles e o episódio até hoje constitui um problema para os
teólogos católicos. A que título foram ressuscitados? Que foi feito deles após
a ressurreição?
Mas este não é o problema maior, e sim um outro, que passa despercebido ao
leitor apressado. Se foram ressuscitados durante a crucificação, isto também
significa que ressuscitaram três dias antes do Cristo. Como fica então Paulo
com seu brado triunfante na primeira epístola aos Coríntios? “Onde está, ó
morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” O fanático judeu
sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de
mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado,
é vã a vossa fé”.
Acontece que as epístolas de Paulo foram escritas antes dos Evangelhos. I
Coríntios foi escrita em Éfeso, cerca de 55 d.C. E Paulo sequer suspeitava que
Marcos, mais tarde, iria escrever tal disparate. (Seu evangelho foi escrito em
Roma, talvez entre 75-80 d. C. Para a Igreja Católica, entre 60-70 d.C. Mesmo
assim, após as epístolas paulinas). Pois se muitos ressuscitaram antes de
Cristo, a ressurreição do crucificado estava longe de ser a primeira vitória
contra a morte.
Em Marcos também está a ressurreição de uma criança por Cristo: cumi, Talita,
cumi. Em João, autor do último dos Evangelhos canônicos (finais da 1ª década do
século II), Cristo ressuscita Lázaro. Quer dizer, ressurreição era algo mais ou
menos banal na época. Só que Paulo, ao que tudo indica, não fora informado.
O problema dos 27 textos do Novo Testamento é que foram compilados mais tarde,
em 367 d.C., por Atanásio, o bispo de Alexandria, no Egito. Ao escrever as
epístolas ou os evangelhos, tanto Paulo como os evangelistas ignoravam que
seriam mais tarde reunidos em um só volume. Cada um foi contando sua versão do
Cristo, sem importar-se com as demais versões, o que aliás nem poderiam
fazê-lo. Daí que o Novo Testamento – como também o Antigo – às vezes está mais
para samba do crioulo doido do que para documento histórico.
Teologia é coisa séria. Segundo o Evangelho de João, o Espírito Santo procede
do Pai. Assim o entendeu o Credo niceno-constantinopolitano, que no ano de 381
já repetia esta profissão de fé. Sabe-se lá porque cargas d'água, os romanos
acrescentaram ao Credo a partícula que,
que corresponde ao nossoe. Daí filioque,
ou seja, o Espírito procede do Pai e do Filho. Os cristãos orientais
acusaram então os latinos de haver alterado os símbolos da fé. Em 444, Cirilo
da Alexandria afirmava que o "Espírito é o Espírito de Deus Pai e, ao mesmo tempo, Espírito do
Filho, saindo substancialmente de ambos simultaneamente, isto é, derramado pelo
Pai a partir do Filho". Inúmeros teólogos eram do mesmo aviso. Mas os
cristãos gregos não conseguiam aceitar a polêmica conjunção, o e (que, em latim).
O caldo engrossou quando o Concílio de Toledo, em 589, oficializou o símbolo da
fé com o filioque, e
considerou anátema a recusa da crença de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Não bastasse o absurdo
conceito do três-em-um - inteligível se levamos em conta a preocupação de fugir
ao politeísmo - discutia-se agora a relação de um com os outros dois. E a
Igreja partiu-se irremediavelmente em dois, em função de três letrinhas. E
dividida permaneceu até hoje, entre Romana e Ortodoxa.
Já foi pior. Houve época em que a Igreja esteve a ponto de cindir-se por uma
única letra. No início do século IV– conta-nos Ehrman – na época de Ário,
professor cristão da Alexandria, praticamente a Igreja inteira concordava que
Jesus era ele mesmo divino, mas que havia apenas um Deus. Mas como exatamente
isso funcionava? Como ambos podiam ser Deus?
Ário considerava ter havido um tempo no passado distante antes do qual Cristo
não existia. Ele passou a existir em determinado momento. Embora fosse divino,
não era igual a Deus Pai; como era o Filho, era subordinado a Deus Pai. Eles
não eram “da mesma substância”; eram “similares” em substância.
O oponente mais conhecido a esta tese era Atanásio, justo aquele que seria mais
tarde responsável pelo cânone do Novo Testamento. Para Atanásio, o Cristo era
feito exatamente da mesma substância – homoousias,
em grego - que o Pai. Nada a ver com substância similar – homoiousias. E a Igreja
arriscou cindir-se por um i.
Foi quando o imperador Constantino, que havia se convertido ao cristianismo
para unificar seu império fragmentado, deu-se conta que uma religião dividida
não podia produzir unidade. Convocou então o Concílio de Nicéia, em 325 d. C.,
que optou pela posição de Atanásio. Há três pessoas em Deus. Elas são distintas
umas das outras. Mas cada uma é igualmente Deus. Todas as três são seres
eternos. E todas as três são feitas da mesma substância.
Entendeu, ó herege?