OS RECIBOS DA
DONA MARISA
João Eichbaum
O processo tem seu cerimonial.
A lei estabelece um modo de proceder que vai além dos atos do processo, porque
limita também o comportamento dos operadores do Direito. Cada qual deles tem
seu papel definido. O juiz representa a lei. As partes representam o exercício
do Direito, dentro do ritual estabelecido pelo ordenamento jurídico.
A lei, antes de tudo, é
impessoal, neutra. A partir dela, se assimilar seu espírito, o juiz incorpora
essa impessoalidade, e com ela empresta à sua postura, na audiência, a
autoridade que é da natureza da lei, despida de sentimentos, quaisquer que eles
sejam.
O defensor, o acusador, a
testemunha, o réu, enfim, qualquer partícipe da audiência, que encontrar no
juiz, não a figura de um homem, mas a encarnação da lei, irá moldar seu
comportamento de acordo com essa concepção.
Os processos do Lula em
Curitiba, porém, não têm seguido esse modelo. Contaminados pela efervescência
política, os feitos se prestam à teatralização, que influi no comportamento das
pessoas, desatando irreverências, insidiosas hostilidades e rancores.
Sérgio Moro, caindo na
armadilha da provocação, responde no mesmo nível. Ou eleva o tom de voz, para
impor autoridade: a autoridade pessoal, não a da lei. E para mostrar
imparcialidade no trato para com o réu, deixa-o à vontade, para falar como se
estivesse em casa, a bater papos informais com amigos, desatrelado do
cerimonial do processo.
Sem se dar por achado, o
magistrado permitiu que se instalassem, várias vezes, entre ele e o réu, debates
nascidos de perguntas mal feitas, ou de respostas insuficientes. Assim, longe
das prescrições do § 2º do art. 187 do CPP, o interrogatório perdeu sua
natureza processual, para desandar no terreno ocupado pelo homem juiz e pelo
homem réu.
E foi como homem, e não como a
encarnação da lei, que Sérgio Moro cometeu a impertinência de perguntar sobre
os recibos de pagamento dos aluguéis do apartamento, que o réu jurava ser
alugado. Lula titubeou, abatido pelo espanto do bom falante surpreendido, mas
logo se recompôs e invocou dona Marisa: dessas coisas, ela é que cuidava.
Invertida a velha regra de
processo penal, segundo a qual o ônus da prova é da acusação, agora aconteceu
um fenômeno, para todo mundo ver e crer: dona Marisa providenciou de lá da
eternidade os recibos, para descansar em paz.