terça-feira, 3 de abril de 2018


A VIRGULA

João Eichbaum

Não custa repetir: a maioria dos bacharéis, mestres e doutores em Direito não tem pleno domínio sobre seu principal instrumento de trabalho, que é o vernáculo. Ou não conhecem a gramática, ou são vítimas da pobreza de vocabulário.

Do inc. LVII, do art. 5º da Constituição Federal, onde está escrito que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, muitos extraem a certeza de que Lula, condenado em duas instâncias, não poderá ser preso.

Eles não só não se dão conta de que “preso” não é sinônimo de “culpado”, como ignoram que o verbo “considerar”, na voz passiva (ser considerado) não tem sentido imperativo, mas meramente indicativo, de referência: ser reputado, ser tido, ser tomado como. Daí a “ser preso” vai um abismo incomensurável.

O significado do verbo aliado à evidência de que a Constituição permite, sim, expressamente, no inc. LXI do mesmo artigo, a prisão de pessoas “não culpadas”, tolhe qualquer dúvida de quem, estando no pleno uso da razão e sem cartas marcadas, conhece primárias lições de vernáculo.

Dia desses, um bacharel, ou doutor, trouxe à baila o art. 283 do Código de Processo Penal para sustentar a tese de que a Constituição só permite a prisão, por força de sentença condenatória transitada em julgado.

Assim está redigido o dito art. 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

O suposto doutor não conhece as funções da vírgula. Ele simplesmente ignorou a vírgula aposta depois do adjetivo “competente”. A vírgula, nesse texto, tem a função de separar os elementos da enumeração, alternando tal função com a partícula “ou”.

São quatro as hipóteses enumeradas como exceção à regra de que “ninguém poderá ser preso”: flagrante, ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária, sentença condenatória transitada em julgado e prisão temporária ou preventiva. A “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente” é uma hipótese distinta da “sentença condenatória transitada em julgado”. Ela está prevista expressamente no inc. LXI do art. 5º da Constituição Federal, sem qualquer outra restrição. Por isso, a vírgula separa as duas hipóteses.

Erros de leitura empobrecem também os argumentos dos juristas que querem a prisão do Lula. Invocando a capenga figura da sentença “meio” transitada em julgado, porque aos tribunais superiores é vedada a análise de provas e  fatos, eles não leem o inc. LIV do art. 5º da Constituição, sobre o império do devido processo legal.

É lícito supor que os constituintes tiveram uma ideia, mas lhes faltou vocabulário para defini-la. Se os legisladores soubessem escrever com clareza e os intérpretes, respeitando pontos e vírgulas, dominassem o vernáculo como instrumento da hermenêutica, a celeuma sobre a prisão do Lula seria abortada.




Um comentário:

Nelson dos Santos disse...

Bom-dia
Meu caro, será que os confeiteiros da constituição tinham em mente esses nuances do vernáculo?
Parece-me que não.