A FILHA QUE EU QUERO TER
Paulo Wainberg
O Hospital Psiquiátrico São Pedro é uma instituição pública centenária do RS que acolhe os “loucos de todo o gênero”. Na década de sessenta, quando eu era jornalista, andei por lá para fazer reportagens e fiquei horrorizado com o ambiente, a sujeira, o nojo, a degradação, o descaso das autoridades e, é claro, com a experiência com a loucura explícita, aquela que não deixa dúvidas.
Os anos passam e, volta e meia, o Hospital São Pedro vem à tona com denúncias, com a sempre eterna falta de recursos, com a iniquidade do Estado gestor e as condições miseráveis de seus “hóspedes”.
E, à cada denúncia, a sempre eterna gama de explicações governamentais, falta de recursos, estratégias futuras, repasses retidos, atacadas pelas oposições que, quando no governo, escapam de resolver o problema com as mesmas explicações.
O fato é que o Hospital Psiquiátrico São Pedro lembra, em muitos aspectos, sanatórios medievais, colônias de leprosos, com os indigentes expostos às piores condições de higiene e abrigo.
Entretanto lá trabalham médicos, enfermeiras, assistentes sociais, funcionários de toda a ordem que, no limite de suas capacidades tentam suprir com, competência e humanidade, tudo aquilo que o Estado, frio e impiedoso, sonega.
Minha filha, que se forma neste ano em Psicologia, estagiou no Hospital São Pedro durante o verão. Além dos relatos que ela fazia das condições dantescas do ambiente, ao mesmo tempo manifestava uma autêntica adoração pelos médicos, enfermeiros e demais funcionários e um adorável carinho por pacientes com quem lidou.
Fiquei feliz em perceber a sensibilidade afetiva dela e a emoção com que se referia aos pacientes, bem como sua própria estranheza de conseguir comunicar-se com eles, nos níveis e padrões deles, desenvolvendo uma ligação carinhosa, humana e tolerante com os doentes mentais.
Mais ainda, ela descobriu e ajudou a desenvolver capacidades integradoras dos pacientes, com resultados práticos estimulantes a mostrar que mesmo os mais desvalidos possuem boas coisas e transmitir, basta que se queira ouvir.
Ao final do estágio, instada pela direção, enviou o texto a seguir:
“Fiz meu estágio de familiarização durante o mês de fevereiro na Unidade Luiz Ciulla. Confesso que eu estava bastante temerosa,apreensiva e contrariada inicialmente. Aqui fora ouvimos coisas,ouvimos experiências, histórias terríveis de como são maltratados ospacientes desta instituição. Falavam que o HPSP era uma prisãomanicomial, que as pessoas levavam choques a torto e adireito... Falavam? Ou isso está no imaginário coletivo? Confesso quenão sei mais.
O fato é que EU levei um choque.
O que vi ali foi puro afeto, amor, carinho e um esforço brutal de uma equipe em manter o melhor ambiente possível para aqueles amados velhinhos. Caducos? Nem tão caducos assim.
Pessoas em sofrimento psíquico sim. Pessoas que com um sorriso, um afago derretiam-se, agradeciam à cada olhar.
Quis levar todos para casa, com exceção da Simone, porquedessa sim eu tinha medo... Normal.
Me senti acolhida pela equipe e principalmente pela enfermeira Dóris que aguenta o tirão, que trata com respeito e individualidade cada filho que ali habita. A enfermeira Dóris é um exemplo para muitagente.Vê-se o amor saltando aos seus olhos e isso era lindo de ver.Muitas vezes chorei, me emocionei e senti raiva também. Chorei ao ver a Soares, saindo de sua pose de batuqueira e se entregando às marchinhas de carnaval que, pasmem, ela sabe todas, de cor e salteado.
Chorei com seu João ao vê-lo pintar aqueles quadros lindos na Oficina de Criatividade. Senti raiva da raiva que os leigos sentem ao se referir a uma instituição tão nobre que faz tanto com tão pouco. Foi uma experiência de vida que levarei comigo pro resto da minha vida. Só tenho a agradecer pela oportunidade de tornar-me mais gente, maishumana e de entender que sim ,a verdade é relativa e está dentro decada um de nós. Tenho divulgado essa experiência entreamigos, familiares, colegas. Acho que todas as pessoas deveriam passar por aí. A loucura é a gente que cria. Um abraço afetuoso e meu mais nobre agradecimento. Tatiana Knijnik Wainberg”.
Hoje ela me enviou a cópia, que reproduzi acima. Fiquei emocionado ao encontrar, mais uma vez na minha filha, a humanidade que é inerente à ela e que, ao longo de sua educação, nós insistimos em transmitir-lhe como um dos mais elevados valores da existência. Fiquei extremamente orgulho de minha filha que passou por uma experiência que tem tudo para ser chocante, assustadora e traumatizante e ver que ela saiu fortalecida, madura e com o coração à flor da pele.
Sei que ela será uma psicóloga capaz de se identificar, agir e modificar todos aqueles que com ela buscarem ajuda, tanto quanto ela já faz, no plano comum, com aqueles com quem ela se relaciona.
Acho que não existe uma “alma” humana, no sentido místico da palavra. Porém acredito muito no fenômeno chamado Empatia.
Portanto me declaro um pai feliz e orgulhoso da filha que tem, generosa, emocionada, capaz de se apaixonar e de gerar e transmitir amor.
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