quinta-feira, 25 de março de 2010

APRESENTAÇÃO DESNECESSÁRIA

Este blog, a partir de hoje, está mais enriquecido. O estilo escorreito, a palavra fácil e o texto cativante (o leitor fica preso nele até a última linha) do Paulo Marinho me deslumbram há mais de uma década. Suas crônicas nos jornais do Grupo Sinos me imantaram de tal modo que não descansei, enquanto não o conheci pessoalmente. Ele é o tipo de escritor que desperta esse sentimento na gente: tenho que conhecer esse cara, pra ver se ele tem a cara das crônicas que escreve. Por isso, a desnecessidade de apresentação: as crônicas nos apresentam seu autor.
Quero repartir com meus amigos a alegria de lê-lo. De lá de Goiânia, onde se arranchou, Paulo Marinho vai nos divertir, nos fazer pensar e, quem sabe, até chorar.

Exéquias

Paulo Marinho

A carreata com o cadáver do doutor Cazuza descia a ladeira solenemente. O morto finara-se na tarde anterior, de uma insólita congestão de arroz de carreteiro. A viúva, madame Eurápia, cuidou para que o último e agonizante pedido dele – de que os amigos, à guisa de despedida, circundassem com ele a praça da cidade antes do enterro – fosse cumprido à risca.

Aconteceu que na ladeira oposta, em igual formação, desciam os componentes de outro cortejo, festejando os recém casados Herculano e Eufrasina. Estes formavam séquito semelhante àquele que acompanhava o falecido Cazuza, a diferenciar-se somente pela barulheira que protagonizavam, com fogos e buzinações. Também vinham à indiana, embora mais desordenados.

Então, aconteceu: ambas as fileiras chegaram simultaneamente no cruzamento ali existente. Não se sabe se quem avançou a preferencial foi o carro com o esquife, por desatenção do funerário Argemiro, ou se foi o do noivo, Herculano, que estava mais preocupado em esfregar as coxas de Eufrasina, do que com o trajeto. O que se viu foram os automóveis embarafustando-se entre si, como nervosas formigas antes de um aguaceiro.

Depois de rodarem lado a lado, ultrapassando-se, cortando-se as frentes, a maioria rompeu para destinos opostos. Enquanto alguns dos convidados dos nubentes acostavam na capela mortuária, os vários tristonhos coevos do morto foram parar na sede social do Clube Comercial, preparado para a festa de casamento. Inclusive o defunto.

No Clube, os do velório, embora surpreendidos com o salão enfeitado, com a alegria reinante, principalmente com a bandinha tocando polcas, acabaram aceitando o chope, e colocaram-se ao lado do caixão (estrategicamente posicionado onde deveria estar o bifê) com sua melhor cara de enterro. Os do casório que lograram chegar ao lugar certo, ao verem a urna funerária, pensando se tratar de uma brincadeira, davam vivas à ocasião, rindo aos borbotões.

Na capela, os convidados para o casório, sem se dar conta da confusão, apearam dos carros e se perfilaram num corredor polonês, misturados entre parentes do morto, a espera dos noivos. Os do velório não entendiam a alegria destes, que esfregavam as mãos e se cutucavam a todo o instante, portando inexplicáveis e largos sorrisos. Entenderam muito menos quando a viúva, ao surgir choramingando, quase foi soterrada por uma chuva de grãos de arroz, o que para a coitada foi como falar de corda em casa de enforcado. Acometida de um ataque de fúria, a pobre investiu contra a turba, derrubando o bolo de casamento, que acabara de ser acomodado no estrado onde deveria estar o falecido. Ato contínuo, madrinhas da noiva se atracaram nas carpideiras.

No clube, primos do morto saíam aos socos com garçons. Abandonado, o doutor Cazuza jazia sem os sapatos, os quais rodavam para lá e para cá em meio ao caos, angariando fundos para a lua de mel dos pombinhos, que por sua vez, alheios a tudo, se amavam loucamente numa cova aberta no cemitério. Um horror, um horror.

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