quarta-feira, 31 de março de 2010

COLUNA DO PAULO MARINHO

Morreu o Daniel

Paulo Marinho

Estou de luto. Semana passada morreu um ente meu, muito próximo, o Daniel Boone. Bem, não ele propriamente, mas o ator americano Fess Parker, que encarnou o personagem nos anos 60 e 70 num seriado na tevê. A gente falava Daniel Bum. Não importa. Quem tem menos de 35 não vai lembrar-se dele mesmo. No entanto, quem tem mais, haverá de se recordar do grande Daniel Bum. Para os padrões de hoje, política e ecologicamente super corretos, ele seria demonizado. Primeiro, porque viveu boa parte da vida vendendo peles de animais, principalmente gordos castores, os quais caçava habilmente com armadilhas dentuças. Depois, porque não podia ver um índio, que já ia metendo, sem pestanejar, uma bala na testa, com um espingardão de um metro e meio de cano. Nós, os meninos de doze, treze, a-do-rá-va-mos. Aliás, quando ele não matava uma meia dúzia de shawnees ou pelava uma renca de castores, o seriado não tinha graça. O Bum era bruto. Tão bruto que na abertura do programa (ecologistas, respirem fundo) já ia rachando pelo meio um pinheiro em pé, com uma machadada precisa, bem no miolo da árvore.
O Bum real, verdadeiro, foi um herói americano, daqueles típicos: lutou pela independência, ajudou a colonizar o país, além de dizimar com esmero a fauna, a flora e a indiada. Tudo o que faz americano lamber os beiços. Mas, quem disse que nos importávamos? O que queríamos era ter uma machadinha daquelas, o trabuco, um amigo índio (sim, no seriado ele tinha um fiel companheiro, o Mingo, um índio Cherokee educadíssimo, a cara da Baby Consuelo, só que sem botox) e um chapéu de pelos. Pausa para o chapéu de pelos. Vou confessar: uma das minhas maiores frustrações é nunca ter tido – além de um colete de couro malhado que o Tarcísio Meira usava na novela Irmãos coragem – um chapéu igual ao do Bum. O adereço era um mão-pelada praticamente inteiro enfiado na cabeça dele, completamente morto, diga-se, com o focinho para frente, bigodinhos incluídos e o rabo bicolor, balançando nas costas. Coisa linda. Tenho certeza que aquele chapéu foi o sonho de consumo de uma geração inteira, como é hoje um X-box.
Agora eu, já velhusco, fuçando na semiótica, aprendo os sistemas de significação dos fenômenos culturais, o que me faz entender que o seriado, como todos os seriados naquele tempo, aliás, era pura propaganda do americano bastantão e tale cosa. O que quer dizer que nós, os guris vidrados, acotovelados na frente da tevê para ver o Bum e o Mingo não passávamos de um bando de sórdidos ratazanos de laboratório. Felicíssimos, claro, torcendo avidamente para o Daniel, com seu chapéu de mão-pelada. Já nem sei se havia algo educativo naquilo tudo, embora o Mingo se saísse de vez em quando com frases a la Paulo Coelho, como “a paciência é uma virtude”, enquanto escalpelava um desafeto.
Os singelos seriados terminaram. Todavia, desconfio que a exportação televisiva de ideologias continue. Principalmente da idiotia coletiva via dos realities shows, como o Big Brother. E eu duvido, honestamente, que daqui a 30 anos alguém vá se lembrar de algum destes “heróis” modernos, como a eles se refere aquele cascarrento do Pedro Bial. Ignorância por ignorância, prefiro as dubladas. E fico com a ampla e contundente simbologia da machadinha do falecido Bum. O gosto podia ser duvidoso, mas a gente engolia sem remorso.

Acadêmico de Direito PUC-GO
dogmaetabu@hotmail.com

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