Janer Cristaldo
Você passa na feira e ouve: “vendo três pexe por dez real. O freguês qué comprá?” Dá pra entender? Dá. A comunicação é eficaz? É. Mas obviamente não é correta.
Nasci em geografia em que se comiam as consoantes finais das palavras. Erres e esses era como se não existissem. Tanto que, quando chegava alguém da cidade, costumava-se dizer: fulano é cheio de erres e esses. E aí se pronunciava o r e o s finais, para bem definir o forasteiro. Apesar de ter sido alfabetizado, eu também não usava essas consoantes. Soaria como um tanto pernóstico lá no Ponche Verde. E mesmo em Dom Pedrito. Até hoje, coloquialmente, costumo dizer “tu vai hoje ao cinema?” Mas isso com pessoas muito íntimas. Não vou dizer “tu vai” para alguém que acabo de conhecer, muito menos em uma palestra.
Está provocando celeuma o livro Por uma Vida Melhor, adotado pelo Ministério da Educação, que considera ser válido o uso da língua popular, ainda que com seus erros gramaticais. Dizer "Nós pega o peixe" ou "os menino pega o peixe", seria aceitável. Para quem não tem escola, sem dúvida é aceitável. Mas a escola existe para ensinar os alunos a falar corretamente. Se não ensina, não tem porque existir. Um livro, adotado pelo MEC, não pode abrir tal exceção.
Em minhas viagens, conheci poliglotas analfabetos. Em geral nos souks de países árabes, mas também vi isto na Grécia. É típico de povos comerciantes falar várias línguas, embora não entendam nenhuma. Cansei de ver crianças e mesmo adultos oferecendo quinquilharias a turistas em sueco, alemão, inglês, francês, italiano, espanhol e até mesmo em português. Eles têm uma intuição extraordinária para adivinhar a nacionalidade do cliente. Só de me olhar, já vão perguntando: Brasilia, Brasilia?
O vocabulário é escasso, é verdade. Em geral se compõe de apenas três ou quatro palavras, mas que servem para o que se quer: barato, quer entrar, bonito, muito obrigado e números, obviamente. Eles sabem contar até cem em diversas línguas. A dor ensina a gemer.
O turista também acaba apelando a recurso semelhante. Quando giramos por vários países, as línguas se embaralham. Já foi inclusive proposta uma nova língua na Europa, o europanto. To speakare europanto, tu basta mixare alles wat tu know in extranges linguas. Seria a única língua do mundo que se aprende quase sem estudá-la. Teria 42% de inglês, 38% de francês, uns 15% de um misto de outras línguas européias e uns 5% de fantasia. No est englado, non est espano, no est franzo, no est keine known lingua aber du understande. Wat tu know nicht, keine worry, tu invente.
Terá futuro? Acho que não. Mas de vez em quando, principalmente quando ando pelo norte da Europa, me surpreendo falando um europanto rudimentar. Sem querer. É um pidgin mais sofisticado, que envolve não apenas duas línguas fronteiriças, mas as várias línguas de muitas fronteiras.
Lê-se no livro do MEC: "Você pode estar se perguntando: "Mas eu posso falar "os livro"?" Claro que pode. Mas fique atento, porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito lingüístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas lingüísticas".
É óbvio que pode. Falar errado não é crime. Tanto que a maior parte do povo fala errado. Pior ainda, há muito advogado e jornalista falando errado. Já li petições que são um insulto à inteligência. Fosse juiz, eu a devolveria incontinenti e mandaria o advogado repetir o primário.
Tive uma educação rígida no ginásio, naqueles dias em que reprovar fazia parte da vida escolar. Meu professor de português descontou certa vez dois pontos de um aluno por ter escrito “feichão”. Saí do colégio com uma redação impecável. Ou não sairia do colégio. Duas décadas mais tarde, fui professor de Letras na graduação e pós-graduação, na UFSC, e tive de reprovar alunas em fase final de curso porque escreviam coisas como "eu poço", "eu fasso" e outras do gênero. Ou seja, vinte anos depois, a universidade sequer chegava ao nível de meu ensino ginasial.
Minhas aluninhas reclamavam. Que eu deveria ser professor de Língua, não de Letras. Que me desculpassem. Não consegue degustar filé quem não domina o feijão com arroz. Ao final de cada ano, era choro e ranger de dentes. “Mas eu estou com meu nome impresso no convite de formatura”. Que façam então novo convite. “Mas meu pai organizou um churrasco”. Que organize. Ano que vem terás churrasco de novo.
Mas voltemos ao Vida Melhor. Absurdo falar em vítimas de preconceito lingüístico e afirmar que muita gente toma as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas lingüísticas. As regras de norma culta são, sim senhor, padrão de correção das formas lingüísticas. Não fosse isso, a língua implodiria, dando lugar a um patois qualquer. Não duvido que tenha existido algum desses novos pedagogos na Roma antiga, que liquidaram com o latim e deram origem ao italiano, português, espanhol e romeno. Nada contra. Mas uma língua, se quiser persistir no tempo, tem de ter suas defesas.
Curiosamente, nestes dias em que velhos comunistas querem purificar o vernáculo, proibindo anglicismos, o MEC quer introduzir na língua um anglicismo atroz. Pois isso de “eu vai, tu vai, ele vais, nós vai, eles vai” é puro inglês. É algo que facilita a língua, sem dúvida alguma. Mas sempre exigirá o pronome. A flexão da forma verbal permite eduzir o falante.
Idiossincrasias de cada língua. O problema é que, depois de Lula, analfabetismo passou a dar prestígio. Para que ser culto, se um analfabeto – que se gaba de ser analfabeto - pode chegar à Presidência da República? E ainda recebe 200 mil dólares para fazer palestras, paga que professor universitário nem sonha em receber. Estudar é perda de tempo. O livro do MEC, no fundo, quer erigir o Supremo Apedeuta à condição de um Camões da nova língua.
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