Se há algo que não entendo no mundo, é o culto a personagens míticas. Por exemplo, as bodas reais na Inglaterra. Que fizeram de importante na vida o príncipe William e a Kate Middleton para atraírem a atenção de dois bilhões de pessoas no mundo, que é o número estimado de telespectadores do enlace? Um nasceu príncipe e ela, plebéia, foi a eleita do príncipe.
E daí? O culto a eles prestado pelas multidões em nada difere ao culto um dia prestado a Hitler ou Stalin, Mao ou Kim Il Sung, Beatles ou Bono Vox.
Ou melhor, talvez entenda. Estes espécimes foram muito bem definidos no século passado por um judeu da Ucrânia. É o Kleinen Mann, de Wilhelm Reich. Ou o Zé Ninguém, como foi traduzido em português: “O homem pequeno é aquele que não reconhece sua pequenez e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, força e grandezas alheias. Que se orgulha de seus grandes generais mas não de si próprio. Que admira as idéias que não teve, mas jamais as que teve. Que acredita mais arraigadamente nas coisas que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça fácil de assimilar”.
Daí a acreditar no papa, em Hitler ou Stalin, basta um pequeno passo. Estas gentes, eu as conheço desde minha adolescência. Continua Reich: “Tu mesmo te desprezas, Zé Ninguém. Dizes: ‘quem sou eu para ter opinião própria, para decidir sobre minha própria vida e ter o mundo como meu?’ E tens razão: quem és tu para reclamar direitos sobre tua vida? Deixa-me dizer-te.“Diferes dos grandes homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo grande homem foi um dia um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza em seu modo de pensar e agir. O grande homem é pois aquele que reconhece quando e em que é pequeno”.Mas Reich falava do grande homem. Que grandeza tem o principito? Se tem alguma, desconhecemos. Ao que tudo indica, a época anda carente de contos de fada, com príncipes e cinderelas, carruagens e castelos. Só falta o dragão. Dragão tem pouco prestígio nos dias que correm. Milhares de pessoas estão acampando nas proximidades da Abadia de Westminster para esperar a passagem dos noivos. Até parecem os panacas que em São Paulo acamparam junto ao Morumbi para ver um apologista das drogas e um sonegador do imposto de renda, o McCartney e o Bono Vox.
Não tenho apreço nenhum por esses personagens construídos pela mídia. Sim, porque é a mídia quem os constrói. Os jornalistas os criam e depois passam a prestar-lhes culto, como se algum valor tivessem. Para que serve um rei? Pelo que sei, para receber colegas e posar para cartões postais. Não por acaso, a imprensa – a mesma que os alimenta – criou a expressão “rainha da Inglaterra”, para definir a condição de um político que ocupa um alto cargo mas não dispõe de poder algum.
Gilles Lapouge, o correspondente do Estadão em Paris, tenta uma resposta ao enigma, em sua coluna de ontem: “A questão é a seguinte. Por que ato de prestidigitação essa monarquia, que não serve para absolutamente nada, continua a fascinar? Lembremos que o rei tem três funções apenas: ele outorga honrarias, nomeia o primeiro-ministro que o Parlamento lhe diz para nomear e dissolve, nas mesmas condições, o Parlamento. “A essa pergunta, podemos dar respostas racionais. "Esse sistema assegura a permanência de uma classe dominante competente, unida pelos laços de família, de geração em geração", disse Edmund Burke, no século 17". Será que assegura? Os franceses guilhotinaram seus reizinhos e a França, hoje, bem ou mal, é dirigida por uma classe dominante competente. Verdade que, ao visitarmos os castelos da realeza francesa, as guias turísticas a ela se referem com um ar nostálgico. Suponho que os franceses, diante da pompa toda de Londres, a cada vez que ocorrem tais bodas, sintam-se profundamente arrependidos de terem cortado a cabeça de seus reis.
Já estive perto de rainhas e príncipes. Mas por acaso, quase sem saber. Faz uns bons vinte anos, talvez trinta. Eu estava em Madri, no hotel Inglés, na Calle Del Viejo Idiota. Ou seja, na Calle de Echegaray. José Echegaray, personagem polêmico de fins do século XIX, era engenheiro, matemático, dramaturgo, político... e recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1904. Valle-Inclán, escritor galego que vivia na mesma rua, dava como endereço Calle del Viejo Idiota. E consta que mesmo grafando assim o endereço, recebia correspondência.Já contei, mas o caso é pertinente. Na Calle del Viejo Idiota há um restaurante que nada tem demais, a não ser ser simpático. É o La Cacerola. Antes de las doce del medio-día, você paga apenas o que come. O que bebe é brinde. Como em viagens não sou de acordar cedo e considero que dez horas é um momento indelicado para tomar café, começo com alguns pinchos regados a cerveja ou vinho. Naquele dia havia uma excitação inusual no boteco. Uma velhota saía e voltava a toda hora para limpar as vitrines pelo lado de fora. Era a cozinheira do Cacerola. Eu ainda não havia lido os jornais, não imaginava o que me esperava.Lá pelas tantas, a faxineira entra aos pulos na sala, gritando: “yo lo he visto. El principito. Y me hacía así”. E fez o sinal de quem acenava. Só então me dei conta que estava presenciando um momento histórico e não sabia. Saí do bar e olhei para a Carrera de San Jerónimo, que corta a Calle del Viejo Idiota. Um aparato colossal de segurança, que se estendia do Palácio Real até o Paseo del Prado, tomava conta das ruas e telhados. Era o juramento do príncipe Filipe às Cortes Espanholas. Junto com o príncipe vinham rei, rainha e as infantas, mais um corpo de cavalaria mais ajaezado que um toureiro com seu traje de luces. A cozinheira ganhou seu dia naquela manhã. Deve ter passado meses e meses feliz, sentindo-se íntima do principito.Estranho o poder dos donos do mundo. Quantas pessoas Filipito terá feito feliz, com um simples olhar dirigido à Calle del Viejo Idiota?Abril de 1980 foi um mês pródigo para tropeçar em personalidades. No dia 16, eu bebericava uma cerveja e lia no Select, no Boulevard du Montparnasse. Lá pelas tantas, um burburinho perpassou o café e muita gente foi para a rua. É que passava na esquina, rumo ao cemitério Montparnasse, um ilustre cadáver, o de Sartre. Certamente, o mais famoso e equivocado pensador do século passado. Nem retirei meus olhos do livro. Podia estar passando ali o cadáver de De Gaulle, não me diria nada.
No dia 30 do mesmo abril, estive na coroação da rainha Beatrix, na Holanda. Também por acaso. Era feriadão na França e levei duas amigas parisienses para conhecer Amsterdã. Não havia uma mísera vaga nos hotéis. A menos que buscássemos um a pelo menos cem quilômetros de distância. Decidimos dormir no carro, à beira de um canal. Acordei cheio de pelos com um cachorro me lambendo a barba. Da Beatrix, só tenho uma lembrança. Atrapalhou meus dias de Amsterdã.
Ah! E também já vi o papa. No caso, o João Paulo II, que domingo competiu postumamente com as bodas de Londres, no dia de sua beatificação. Quem deve estar vibrando, lá no Além, é o sacerdote mexicano Marcial Maciel, o fundador dos Legionários de Cristo, morto em 2008. Acusado de abusar sexualmente de mais de 20 seminaristas - incluindo os próprios filhos - Maciel teve filhos com várias mulheres e, como um outro santo moderno, o Martin Luther King, foi plagiador emérito: plagiou descaradamente o livro de cabeceira da legião, intitulado Saltério de Meus Dias, e impôs a toda a organização um quarto voto de silêncio para se proteger de denúncias. Um de seus antigos colaboradores o acusa inclusive de ter envenenado seu tio-avô, o bispo Guízar, que apoiou a bem-sucedida carreira eclesiástica do sobrinho no México dos anos 1930.
Deste santo senhor, temos fartas fotos sendo abençoado pelo papa João Paulo II, recebido em audiência especial no Vaticano. Centenas de denúncias sobre o padre Maciel chegaram à mesa de Wojtyla. O papa as desprezou. Maciel enchia praças e estádios de futebol em suas viagens pelo mundo. Era merecedor da benção papal. Não é todos os dias que um pedófilo priva com um papa. Daqui a dois dias, um milhão de pessoas estará homenageando o santo homem que abençoou um criminoso.Mas falava que vi Sua Santidade. Eu passeava às margens do Tibre, quando ouvi uma voz tronituante que vinha dos céus. Pensei ser o próprio Cara. Mas falava em italiano. Como era de supor-se que Jeová falasse hebraico, conclui que devia ser seu vice. Era. Uma multidão de carolas o ouvia na Piazza San Pietro.
Em suma, se coincidi num mesmo ponto geográfico com essas sumidades, foi por mero acaso. Sou um pouco como Julien Sorel, o personagem de Stendhal, que estava na batalha de Waterloo e não tinha idéia precisa do que acontecia ali. Não tenho preocupação alguma com o tal de sucesso. Sucesso é uma soma de equívocos. Mas guardo ternas lembranças dos bons momentos que passei com anônimos amigos e namoradas, em singelos botecos da vida.
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