terça-feira, 2 de agosto de 2011

ERVA CONTRA ERVA

Janer Cristaldo

São Paulo, que é conhecida como a capital do medo e da gastronomia, ainda vai se tornar a capital das marchas. Um dia marcham os evangélicos por Jesus e contra os gays, outro dia marcham gays e simpatizantes com Jesus e contra a homofobia. Aliás, na última parada gay, o Cristo foi entronizado como o patrono da bicharada. Já os evangélicos brandem o velho Jeová, para quem bicha só matando.
Claro que cada marcha quer o maior Ibope. A Marcha para Jesus, na zona norte da cidade, segundo seus organizadores teria reunido cinco milhões de marchantes. Para a polícia foi apenas um milhão. A Parada Gay, na Paulista, teria reunido quatro milhões. Quando se sabe que a avenida comporta apenas 500 mil pessoas.
Já houve também a marcha pela liberação da maconha, marcha redundante, já que a maconha desde há muito está liberada. Que se libere então o tráfico, este sim proibido. Proibido mas tolerado. Em fins de semana, é mais fácil encontrar cannabis do que uma aspirina. Mas esta bandeira, que seria a bandeira coerente, ninguém ousa empunhar. Para começar, os traficantes não a endossam. A tal de marcha da maconha reuniu alguns maconheiros em algumas capitais do país e só serviu – como só servem as marchas – para atrapalhar o tráfego.
Aqui, ao lado de onde moro, já houve até marcha contra moradores do bairro que eram contra a construção de uma estação de metrô na Angélica. Era uma marcha contra os contra. Seus organizadores prometiam mais de 50 mil marchantes. Foram 700, segundo a polícia. Eu, que por acaso passei pela manifestação, quando se reunia em frente ao shopping Higienópolis, diria que não foram mais de 300.
Ontem, na avenida dileta dos marchantes, mais uma marcha saiu em marcha, organizada pelo Movimento Nacional Contra a Liberação da Maconha, que pretendia reunir 100 mil pessoas na Paulista. A bandeira parece não ser muito popular. Reuniu apenas 800 gatos pingados. O líder da manifestação, autodenominado xamã Gideon dos Lakotas, propunha a seguinte pergunta: "Você daria maconha ao seu filho?"
Pergunta besta, afinal são os pais que dão maconha aos filhos. O usuário de maconha é geralmente jovem e raramente tem independência econômica. A erva é normalmente paga com a mesada. Algum pai ignora que quando o filho vai a uma rave ou show de rock está na verdade indo a um banquete de drogas? Ingenuidade tem limite.
O líder da marcha contra a maconha pertence à Família Espiritual do Céu Nossa Senhora da Conceição. Segundo a entidade – leio nos jornais - "o povo brasileiro sabe que a maconha não deve ser liberada". O movimento, diz a carta, surgiu por iniciativa de um grupo de amigos e começou a ser divulgado em escolas, universidades, movimentos sociais, ONGs, além "de irmãos de fé das mais diferentes crenças e religiões".
De acordo com os organizadores, Gideon é um escritor que dá cursos e ensinamentos religiosos. O grupo, criado em Minas Gerais, se autodenomina uma obra de caridade sem fins lucrativos, dedicada ao aperfeiçoamento espiritual do ser humano. "Não queremos uma nação de drogados e viciados", diz a carta do movimento.
Vamos ao que os jornais não contam. Que é um céu? Céus é como se denominam os templos dessa seita ridícula que surgiu no Brasil, o Santo Daime. É um culto sem pé nem cabeça, criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo, a Virgem... e a floresta amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então adaptou-se.
Assumiu inclusive elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos, que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de cipó.
Já tem até budista e hare krishna tomando chá de cipó. Para a monja tibetana Ani Sherab, o chá "oferece mais clareza para expressar e reconhecer a verdade. Com o daime, recebo muitas bênçãos e ensinamentos dos budas". Líderes das comunidade hare krishna desaprovam o daime, mas não negam que alguns membros consumam o chá. Para o professor de português Pandita, 51, Krishna se revela de formas diferentes. "O daime pode ser uma delas".
Nas cerimônias – relatava a Folha de São Paulo em 2007 – manifesta-se a salada toda. O altar é de Ganesh, deus hindu do sucesso. O som oriental de cítaras é substituído por maracás indígenas e mantras em sânscrito se sucedem a hinos em português. Não faltam sequer as entidades de umbanda. Segundo a mãe-de-santo Maria Natalina, "a ayahuasca proporciona sensibilidade maior. É um instrumento de contato superior com os orixás".
Na zona sul de São Paulo – segundo a reportagem – no Centro Espírita Sete Pedreiras, a miscigenação de crenças se repete, com orixás da umbanda, santos católicos e retratos de daimistas posicionados em lugares estratégicos do terreiro. A fusão resulta na umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira. Para o antropólogo Edward MacRae, da Universidade Federal da Bahia, assim como outras religiões o Santo Daime também tem a propriedade de aglutinar elementos de outras crenças, como umbanda, traços indígenas, cristãos, afro e esotéricos, ocidentais ou orientais. Mais um pouco de criatividade vocabular e teremos o catodaime, o krishnadaime, o budidaime. O fenômeno já existe, só falta batizá-lo.
São estes sorvedores de xaropes eméticos que promovem a tal de marcha contra a maconha. No site oficial do Céu de Nossa Senhora da Conceição, você encontra o “patriarca Gideon e a matriarca Genecilda, fundadores desta obra na terra”, encimados pela imagem do Cristo, “mestre desta obra”. O site traz a história do xamã e sua batalha pela defesa da sagrada ayahuasca.
Cristo é polivalente. De Deus encarnado, virou patrono das bichas e garoto-propaganda de um caldo enauseante que provoca vômitos e diarréias.

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