terça-feira, 13 de setembro de 2011

MISÉRIA VOCABULAR

Janer Cristaldo

De Solange Maria Mendonça Campos, recebo:

Prezado Janer, eu dava uma aula, no curso médico de graduação, para uma turma do 5º. ano. Ou seja, os senhores/as ali presentes estavam quase formados. O tema era "Depressão: sintomas e sinais universais na clinica médica básica". Arrisquei: "a insônia é o arauto da depressão" (feliz expressão de um grande psiquiatra francês, daqueles da velha cepa, que quase moravam dentro do hospital).Mal-estar na classe. Repeti, e constatei pela perplexidade dos rostos à minha frente, que ninguém sabia o que era arauto. Expliquei quem era em outros tempos, e sua função social então. Alguns entenderam, e fizeram a associação óbvia, a maioria não. Então desenhei no quadro (acho que ai em SP diz-se lousa?) um daqueles arautos de desenho animado de Disney, com plumas no chapéu, corneta com aquela bandeira, etc.Aí eles entenderam quem era o arauto, mas eu ainda tive de explicar que assim como o arauto fazia, tocando a corneta, a insônia vinha anunciar, etc. Foi neste dia que comecei a pensar em não dar mais aula.Abçs,

Solange

Não se espante, Solange! A miséria vocabular é moeda corrente em nossos dias. Perdeu-se a curiosidade de saber o sentido de uma palavra desconhecida. Dicionário, que deveria ser o primeiro instrumento de aprendizado de um aluno, é livro ausente na maioria das casas. Sou fascinado por palavras e, se tropeço em uma que desconheço, vou correndo ao dicionário. Trabalho com um ao lado do computador e tenho, hoje, acho que mais de cinqüenta em minha biblioteca.
Nem todos são de língua, bem entendido. Tenho dicionários bíblicos, de teologia, literatura, mitologia. Enfim, seria demais pedir que todos participem de meus vícios. Mas pelo menos um dicionário – unzinho só – devia existir entre os livros de cada estudante.
O pior é que esta miséria vocabular grassa até mesmo entre profissionais que lidam diariamente com as palavras. Vi isto de perto em meus dias de redação nos grandes jornais. Há uma tendência, entre os jornalistas – particularmente os da Folha de São Paulo – de nada escrever que um leitor mediano não entenda. Se a palavra é inevitável, lá vem explicação. Sempre que você encontrar a palavra latrocínio, o redator abre parênteses e explica: roubo com morte. Como se precisasse explicar o que é latrocínio. A partir daí, decorre uma conseqüência lógica. Se o jornalista desconhece o significado de uma palavra, é óbvio que o reles leitor também a desconhece. E o jornalista, pretendendo ser didático, prefere evitá-la.
Transcrevo minhas aventuras nos dias de Folha, que estão em meu livro Como ler jornais, editado em 2006.Escrevendo sobre uma escaramuça qualquer no planeta, fiz uma manchetinha mais ou menos assim:OBUS MATA UM E FERE TRÊS
Mal viu o título na rede, um jovem editor reclamou:— Obus? O que é isso?
Obus, expliquei pacientemente, é uma peça de artilharia, um tipo de morteiro. Também chama-se obus a granada ou bala lançada por esse morteiro.
— Ah, mas o leitor não vai entender. Ninguém sabe o que é obus.
De minha parte, eu desconhecia palavra mais concisa que obus para dizer tiro de morteiro. Para minha sorte, um dos editores fizera serviço militar. Sim, é isso mesmo, é obus.
"Mas vocês fizeram serviço militar, disse o primeiro. O leitor, nem sempre". O que, pelo menos no que a mim dizia respeito, era falso. Nunca fiz serviço militar. Quando menino eu fazia, isto sim, palavras cruzadas. Projétil de morteiro, quatro letras? Obus.
Meses mais tarde, novo conflito com os redatores hostis ao vernáculo. Me caíra nas mãos um TL (texto-legenda) para titular. Na foto, uma mulher de mãos postas e cabeça inclinada manifestava sua adoração por algo ou alguém. Nem hesitei: EM SINAL DE PREITO
Mal o texto chegou em sua tela, o editor, sempre alerta, gritou de sua baia:— Preito? O que é isso?
Juntei minhas mãos, inclinei a cabeça e disse:— Preito é isto.
— Ah, mas então deve ser uma palavra muito antiga.
De fato, era bem mais antiga que eu. Como aliás a maioria das palavras que eu ou você usamos. Lembrei-me do obus e fui tomado de súbita iluminação. Para aquele menino, formado na reputadíssima ECA, palavra que ele não conhecia certamente o leitor também não a conhecia. Os leitores do jornal eram nivelados pelo padrão do que ele ignorava.Quem passou por jornais nas últimas décadas, terá dezenas destas histórias para contar.
No dia 03 de outubro de 2001, a Folha superou todos seus feitos. A entrevista com Fernando Henrique Cardoso versava sobre o abate de aviões clandestinos sobre o território nacional.
“Precisamos fazer um esforço grande para controlar o terrorismo, que é um inimigo suez” — assim redigiu a repórter a declaração do presidente.
A moça, que desconhecia o adjetivo soez, escreveu como pensou ter ouvido e resolveu esclarecer o leitor, que talvez não soubesse o que significava suez: "FHC se referia aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes por meio de túneis subterrâneos abandonados, de surpresa: ninguém sabe de onde vem".
]Explicação mais que oportuna, já que nem mesmo eu saberia dizer o que significa suez como adjetivo.Ora, diria o jovem editor, o presidente se permite tais palavras porque é um erudito.
Acontece que não se exige erudição de ninguém para falar em soez. As gerações novas, hostis à leitura e viciadas pelo parco vocabulário televisivo, não mais conhecem palavras elementares do vernáculo e ainda se julgam no dever de elucidar para o leitor vocábulos de cujo significado apenas suspeitam. Com este material humano, que sequer conhece a própria língua, faz-se jornalismo. Pois jornalismo, hoje, só pode exercer quem faz curso de jornalismo.
Melhor mesmo, só a história dos perdigotos, já incluída no ror dos clássicos da Folha. A notícia era sobre a epidemia de uma gripe, que se disseminava por perdigotos. O repórter, ciente de sua ignorância, fez o que deveria fazer: consultou o dicionário. Só que ficou na primeira acepção da palavra. Os leitores foram então informados que a gripe era transmitida por filhotes de perdiz. O cidadão urbano foi tranqüilizado. Como nas urbes não existem perdizes, muitos menos filhotes das ditas, não havia porque temer a gripe.

Um comentário:

Gigi disse...

O comentário é bem interessante e refete inconformidade com o sistema das nomeações de ministros do Supremo. O que não exclui que algumas delas tenham excelente curriculum.