OLHA A COR DELE!
João Eichbaum
Oito da manhã, o trem apinhado. Mal havia
lugar para os que entravam, nas estações. No meio do aperto, divisei um
velhinho trôpego que vinha resfolegando, como quem tivesse acabado de chegar ao
cume duma montanha. Vi que ele se dirigia para o lado dos assentos preferenciais.
Mas, o velhinho estacou. Um dos assentos estava ocupado por um afrodescendente
forte, corpulento, aparentando uns vinte anos, com jeito de atleta, que dormia,
ou fazia que.
A cena não passou em branco. Aquele
quadro vivo do trôpego velhinho em pé e o rapagão de boa saúde, acomodado como
se estivesse na própria casa, era duma realidade agressiva Aí, alguém sugeriu
para o velhinho que batesse no ombro do rapaz para acordá-lo e pedir-lhe o
lugar, destinado a idosos, gestantes e mulheres com crianças de colo.
O velhinho fez sinal com a cabeça, que
não. Depois, apontou para o acomodado afrodescendente e disse:”olha a cor
dele”. Ao ouvir a frase, alguém na multidão apertada murmurou: “é racismo”.
Então o velhinho se empertigou: “não, não é racismo. É por medo da cor dele,
que não chamo a atenção do rapaz. Com que direito posso eu chamar a atenção de
um cidadão que tem uma cor privilegiada?”
Eu, branco, sou um cidadão de segunda
classe. Se eu lhe pedir o lugar que me está reservado e ele não gostar de minha
atitude, poderá me chamar de “velho filho da puta”, sem que eu tenha o direito
de retrucar, chamando-o de “negro de merda - que a mãe dele não tem nada com
isso”. Se o fizer, serei arrastado pelos seguranças até a próxima delegacia,
onde serei autuado e preso por crime inafiançável.
“Deixem o privilegiado cidadão dormir” –
continuou o velhinho – ele está fora daquele artigo da Constituição que diz que
todos são iguais perante a lei. Ele tem direito a quotas nas universidades
públicas, nos concursos públicos, até no concurso de juiz, por causa de sua cor,
e eu não tenho esses direitos porque não sou da cor dele, entendeu? Ele é
cidadão de primeira classe, quem o chamar de negro será preso”.
O velhinho tossiu, quase se engasgou com
o próprio discurso, mas prosseguiu: “mas, eu sou cidadão de segunda classe,
tanto faz me chamarem de velho, filho da puta ou corno, ninguém irá para a
cadeia. Agora, tem o seguinte. Se chamarem você de viado e você não for viado,
nada vai acontecer pro cara que te ofendeu. O cara só irá pra cadeia, se você for viado mesmo, porque você,
como viado, é também cidadão de primeira categoria”. Concluiu, quase engolindo
a última palavra: “iguais perante a lei, um caralho”. Ninguém sorriu, nem
chamou a polícia. E o afrodescendente fez o que faria qualquer cidadão acima da
Constituição: continuou dormindo, ou fazendo de que.
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