AI, MORENA!*
João Eichbaum
O pensamento se esvaiu e retirou o nome e
o sentido de todas as coisas. Sua vida agora não vai além de um espaço, onde
ela se move, sem saber por que, nem para qual finalidade. É tudo simplesmente
um branco. Ela se move como sonâmbula. Não distingue o perverso do sublime, a
euforia, do desespero. Não tem currículo. Não tem presente, nem passado. E,
muito menos, futuro.
Não sabe sequer se está viva. Sorri, sem
saber que está sorrindo, chora, sem saber por que está chorando. Anda em
círculos. Não sabe que além daquela cerca, onde ela não consegue passar, começa
o mundo. Ou então, fica sentada, onde a deixaram, olhando o nada. Seus olhinhos miúdos não se movem, não mostram
vida, nem a exasperação da insônia. E não dizem que sim, nem que não. O mal de
Alzheimer a transformou simplesmente numa estátua que caminha.
Recuso-me a acreditar. Dou as costas para
a imagem dessa velhinha miúda, curvada, os cabelos brancos em desalinho, as
mãos estendidas sobre os joelhos, com a pele amarrotada, onde veias salientes
desenham incógnitas.
Prefiro varar a bruma do tempo, em busca
de um carnaval perdido. Prefiro a marchinha que me arranha a alma e me devolve
a saudade. Prefiro a lembrança indestrutível daquela morena linda, resplandecente
como uma rainha de beleza. Saltitante dentro do vestido de noiva, ela levantava
as mãos com luvas de cetim, no cordão de sua festa de casamento, naquele sábado
de carnaval da minha adolescência.
Sem meu nome no edital de convidados, só
pude vê-la da rua. E foi a última vez que a vi, movido pela certeza antecipada de
que nunca mais a veria. A noite de sua felicidade me mandava dar adeus às
minhas ilusões. A partir de então, em todos os carnavais, enquanto evoco sua
beleza de noiva, convoco meu coração torturado, para repetir a marchinha que
todos cantavam com ela, nas bodas:
Ai,morena,
seria o meu maior prazer
passar o carnaval contigo,
beijar a tua boca,
e depois morrer...
*
Para Lourdes França, onde quer que esteja.
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