sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O ALTO-FALANTE DO CEGUINHO ANUNCIANDO...*

João Eichbaum

De terno claro e chapéu, batendo na calçada com a bengala, sua única acompanhante e guia, o ceguinho saía da Floriano, um pouco adiante do armazém dos Albanus, passava na frente da casa do Manoel Ribas e se dirigia para a estação.

Rosa, o locutor, tinha uma voz encorpada e potente. Nada a ver com aquele rapazinho miúdo, que lia os anúncios atrás das lentes grossas que lhe apequenavam os olhos. Raras vezes, o ceguinho, dono do serviço de alto-falantes da Viação Férrea, ocupava o microfone, lendo anúncios em braile, ou divulgando, por puro instinto, a saída dos trens.

O alto falante emprestava melodias para despedidas e chegadas, fosse qual fosse o motivo das lágrimas. A música do adeus sem tempo acompanhava com seu queixume a lenta marcha dos trens que partiam, as rodas rangendo, cadenciadas pelas emendas dos trilhos. A música festiva das chegadas era abafada pelo silvo e pelo tilintar do sino das locomotivas.

Ontem a Avenida era o começo. Começo de sonhos, de amores, de nova vida, ponto de repouso. Ali desembarcavam viajantes trazidos para Santa Maria pelas mais variados ordens do destino. Chegavam romeiros, bancários, seminaristas, freiras, padres, militares, funcionários públicos, caixeiros viajantes, gente procurando a vida, a realização.

 Ali começavam as esperanças de quem buscava outros mundos, os sonhos de quem saía em lua-de-mel, de quem perseguia outros mercados. Era o começo de novos destinos, ou de histórias que o destino mudava. Era o começo da saudade para quem partia e o começo da tristeza para quem ficava, ao som do alto-falante do ceguinho.

Onde hoje é o fim, ontem era o começo. Hoje, parece que Santa Maria termina ali, naquele largo vazio, habitado por pombas, morcegos, moradores de rua e cachorros sem dono. Sobre a estação ferroviária, enterrada no silêncio, metida entre o abandono e um esforço de lembranças, todo o anoitecer é lúgubre e a transforma em marco de uma cidade que não sabe o que fazer de sua história.

*Pedindo licença aos autores de LÁ NO FIM DA AVENIDA e ouvindo a eterna voz de Cézar Lindemeyer.




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