terça-feira, 12 de julho de 2016

QUANDO SE PERDE O PAPEL NAS HISTÓRIAS DE DEUS

João Eichbaum

Vítima de uma loucura de amor prorrogada, mentiu, sem pestanejar, que era primo (primo irmão, emendou) da irmã Agnes. Aí, sem motivos para supor que ele não passava de um cretino, a freira o conduziu por um corredor escuro e frio, fedendo a fundo de baú antigo, até uma sala mergulhada em penumbra menos lúgubre. Lá, acomodadas em cadeiras de rodas, seis velhinhas, todas presas por um pedaço de pano que as impedia de estatelar-se no chão, vegetavam, de olhos parados e feições varridas pela indiferença.

Notando seu embaraço, a freira apontou uma delas e disse: é ela. Sem acreditar que aquela tinha sido a criatura de seus sonhos, a mulher que lhe tinha arrancado disparadas insanas do coração, ele se aproximou da velhinha indicada. E o que tinha sido paixão se transformou em piedade, sem passar pelo desamor.

Há mais de meio século haviam sido cúmplices: ele, seduzido pela beleza dela e ela, encantada com a magia dos dedos dele na arte de improvisar sobre o teclado. Dessa cumplicidade nascera o Coral das Meninas Órfãs, que era a atração da missa dominical da capela de Nosso Senhor Crucificado. Nas manhãs de sábado, ele deixava o cabaré por volta das cinco e meia, mas às oito já estava no convento, tocando órgão: jamais trocaria o sorriso da irmã Agnes por algumas horas de sono.

Aquele sorriso sem batom, que lhe roubava o ar e o fazia pensar em criaturas celestiais para espantar a concupiscência, combinava com som angelical da voz, sem a rouquidão das putas, que passavam a noite bebendo, fumando e arrotando azedo. Era o pagamento que lhe bastava para acompanhar o ensaio do coral das crianças, ao lado da irmã Agnes. Só por causa desse sorriso, que servia de moldura para uns olhos azuis, ele trocava a sanfona do cabaré pelo órgão da igreja. Até que chegou aos ouvidos da Madre Superiora a profissão dele: gaiteiro de cabaré. Desde então, nunca mais se viram.

Mas agora, mais de meio século depois, aqueles olhos azuis olhavam para o nada. Os lábios murchos só se mexiam com grunhidos incompreensíveis. Ela nem levantou para ele o olhar petrificado, quando o antigo gaiteiro de cabaré, já na ressaca da vida, tomou, pela primeira vez, suas mãos gélidas entre as dele, tartamudeando: “irmã Agnes...”

Então o assaltou a certeza de que ela havia perdido o papel nas histórias escritas por Deus. A irmã Agnes tinha sido despedida, sem justa causa, dos serviços divinos. Havia deixado de viver, sem saber que estava vivendo, e iria morrer, sem saber que estava morrendo. Mas, em compensação, estaria liberta da ilusão de entrar calma, plena e feliz no céu, quando desse o último suspiro, para lá esperar a ressurreição, no juízo final.





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