O MENINO SÍRIO, JESUS, E O ATLETA BRASILEIRO
João Eichbaum
Lá estava o menino sírio, com o rosto ensopado de pó e sangue, e
os olhos, sem lágrimas, petrificados por uma inacreditável indiferença ao que
lhe acontecia em derredor. Pouco antes, tinha sido retirado do meio dos escombros
a que a guerra havia reduzido sua casa.
Vítima do ódio, o pobre menino lembra as inocentes pombas que,
segundo a mitologia judaica, eram sacrificadas para aplacar a ira de Javé. A
foto que o mostrou para o mundo revela, mais do que uma criança em estado de
choque, os passos retrógrados do homem na direção da animalidade.
No outro lado do mundo, um país com a economia arrasada pelo poder
pervertido, e dominado pela violência e pela mortandade sem guerra, festejava,
como heróis, atletas que conquistavam vitórias e levavam medalha de ouro
pendurada no pescoço, por saberem nadar, derrubar adversários, correr, chutar
bola, remar e dar saltos mortais.
Um desses heróis, ao entrar em campo para disputar ouro em partida
de futebol, trazia em volta da cabeça uma faixa com os seguintes dizeres: “100%
Jesus”. Esse herói, depois de fazer um gol, bateu os punhos cerrados contra o
peito, exclamando, com os olhos chispados de raiva pelas críticas recebidas:
“eu estou aqui”. E agradeceu aos céus,
quando acertou um pênalti.
Onde estaria o Jesus, por quem se vangloria o atleta brasileiro,
quando uma bomba atingiu a casa do menino sírio e o cobriu de pó e sangue?
Estaria tão preocupado em recompensar a doentia vaidade do enraivecido atleta e
embriagar de felicidade o povo brasileiro com o ouro cujo brilho só veria pela
TV?
Não só desses fatos isolados, mas do cotidiano das pessoas, do
“graças a Deus” ou do “se Deus quiser”, se extrai a ideia de que cada um tem a
proteção, a graça e as bênçãos exclusivas das divindades a quem presta
homenagens, paga dízimos e rende cultos.
Poucos, muito poucos, só aqueles que não têm a racionalidade
emaranhada nos fios da superstição sabem que os deuses estão fora dessas, tanto
das alegrias, como das desgraças. A foto do menino sírio, melhor do que
qualquer catecismo, ensina isso. Ou, se assim não for, será inevitável admitir a conivência dos deuses para com a maldade dos homens.
Nenhum comentário:
Postar um comentário