TERCEIRIZAÇÃO
João Eichbaum
No rosto sereno, cor de
pêssego, os olhos são de uma luminescência sedutora. As curvas dos quadris,
naquele corpo delgado, lembram um rio que se esgueira pelo leito macio da
várzea: sinuoso, com seu desenho de águas luminosas, ele busca o melhor caminho
que o leve para o mar.
A silhueta se pronunciava
contra o escuro do balcão do cartório, onde ela se encostara. O volume das
nádegas e o contorno nítido das coxas, bem fornidas, não permitiam que se
extraviasse em contemplações de natureza espiritual o olhar dos mais bem
intencionados varões. A calça jeans, colada ao corpo, escondia apenas aquilo
que só os cegos não podem ver.
Ao abrir a porta do cartório,
o juiz sentiu a fragrância de gardênia. Mas, nem precisou se perguntar donde
provinha: foi contemplado pelo privilégio de ver, pelas costas, aquele plágio
de Vênus. Na passagem, o meritíssimo ainda pôde ouvir o escrivão, que atendia a
moça, dizendo: “não, não dá, tem que esperar a decisão do titular da vara”.
Antes de entrar no gabinete,
o magistrado acenou para o escrivão, que teve de interromper a conversa com a
jovem para atender ao sinal do chefe. “O que ela quer ?”– perguntou o juiz. “É
candidata a estagiária, mas está apenas começando o primeiro semestre do
Direito” – respondeu, entre dentes, o escrivão. “Mande-a entrar no meu
gabinete” – foi a resposta do juiz.
Na entrevista com o
magistrado, a única coisa que ela apresentou foi aquele certificado de beleza,
realçado pelo brilho dos fios de ouro, que se lhe entremeavam no cabelo
castanho. No mais, ela respondeu ao que podia sobre sua vida, falou de
expectativas e anelos. Só não contou para “sua excelência” que era mãe de um
bebê de dois anos de idade, fruto de uma união desfeita: precisava manter a
aparência de mulher livre.
Assim foi admitida,
incontinenti, como “estagiária de gabinete”. E no gabinete fez carreira,
copiando e colando jurisprudência e autores jurídicos de que nunca ouvira
falar, para montar despachos e sentenças. De sua lavra não conseguia escrever
uma frase sequer, sem agredir o vernáculo. Suas montagens pariram horrores
jurídicos, que passaram incólumes por mais de uma instância.
O estágio, que era doce,
acabou-se. Ela se formou em Direito. Desaprovada, porém, no exame da OAB,
entrou para a estatística dos bacharéis que não sabem o que fazer com o
diploma. Mas agora vai ter outra chance. Na semana passada, enquanto o povo,
indignado, atribuía aos deputados federais todos os vícios e loucuras da
humanidade, por haverem aprovado a terceirização irrestrita, a moça soube da
“seleção para Voluntário no Projeto Sentença Zero do Foro Central”. No
comunicado, assinado por um “Auxiliar de Juiz”, consta que o requisito
preferencial é “a experiência anterior como Assessor ou Estagiário de
Gabinete”.
Além de auxílio-moradia,
assessores, auxiliares e estagiários de gabinete, agora figura também, na cadeia
de instrumentos da prestação jurisdicional, a mão de obra barata de terceiros.
E a bela bacharel está eufórica, agradecida a Deus por sua beleza, porque tem
consciência de que possui todos os requisitos para esse tipo de terceirização.
Principalmente, porque a fotografia do candidato é uma das exigências.
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