A
CEIA E A IGREJA DESTROÇADA
João
Eichbaum
À
primeira vista, parece que o cara, ao lado de Jesus Cristo, está levantando o
dedo médio, com aquele jeito debochado que causa indignação e pode terminar em
sopapos, porque é exatamente o dedo que usa o urologista, para cavoucar onde
macho não gosta. Mas, não. É o dedo indicador e, pela cara do sujeito, a
impressão que se tem é de que ele está a censurar o mestre: “olha só o que teu
Pai fez, e tu que conheces o truque de domar tempestades, deixaste que tudo
isso acontecesse, sem fazer alguma coisa”?
Jesus
Cristo, porém, com as mãos espalmadas sobre mesa, tem um ar de quem tomou vinho
com sobriedade. Nenhuma centelha de desencanto lhe aparece nos olhos, nada lhe denuncia aflição: dá a entender que não
lhe cabe questionar os surtos de fúria de seu Pai.
Junto
à mesma mesa, de pé, um cara metido numa túnica azul, com amplo decote
mostrando uma lânguida pele de moça, parece estar tomado de indignação,
apontando para os destroços e se dirigindo a dois companheiros, como se
estivesse cobrando deles alguma providência.
De fato, os destroços, um monte de tábuas no
chão, caibros pendentes do que restou do teto, fios de luz dependurados,
tijolos quebrados, estão no primeiro plano de uma fotografia, cujo foco é uma
parede inteira, que serve de tela para uma pintura da “Santa Ceia”.
A
vista da aterradora devastação empresta vida às figuras de Jesus Cristo e de
seus apóstolos, graças ao flagrante contraste: os destroços representam a
inanição, enquanto a pintura, baseada na célebre obra de Leonardo Da Vinci,
realça expressões humanas depois de um ágape regado a vinho.
Realmente,
a foto estampada na capa da Zero Hora, mostrando a destruição de uma igreja, da
qual restou intata apenas a parede usada para aquela pintura, foge ao comum dos
apanhados fotográficos. Ela revela uma obra que ganhou vida, tendo seus traços
alimentados quase ao nível da terceira dimensão, graças ao temporal que se
abateu sobre a cidade de Ronda Alta com uma fúria bíblica, na última terça
feira.
É
assim. A vida é uma colcha de retalhos, costurada por acasos. Há os acasos
sociais, causados por nossa índole gregária, e há os acasos produzidos pelas
forças da natureza. Entre uns e outros nos movemos, quer produzam eles
maravilhas, quer produzam desgraças. Mas, há maravilhas também, no meio das
desgraças, como essa foto que foi registrar notícia ruim e acabou se
transformando em obra de arte.
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