segunda-feira, 18 de junho de 2018

SEM PAAVRAS*
Mariléia Sell

Nesta semana uma estudante do curso de Letras me entrevistou sobre bilinguismo. Eu sou bilingue desde criança. O problema é que a primeira língua que eu falava era uma língua proibida. Sim, minha professora da 1ª série nos proibiu de falar o hunsrück na escola. Proibiu terminantemente e ai que a desobedecêssemos; seria castigo físico na certa. Não, não estou falando da Idade Média; meu ingresso escolar foi em 1980. A pedagogia moderna ainda não tinha conseguido chegar naquele lugar remoto. Os castigos variavam entre ficar ajoelhada em um canto da sala, ou ficar de pé, com os braços erguidos, também em um canto, virada para a parede. Eu evitava, morria de medo da professora, tão grande e tão importante. Ficava quieta. Bem quietinha. Não sabia falar uma única palavra em português quando entrei para a escola. Fiquei sem palavras. Fiquei muda até as férias de inverno, até aprender alguma coisinha.
Na entrevista, a aluna pediu para narrar alguma situação vivida, em que a questão da língua tivesse ficado evidente. Resolvi contar uma história que nunca havia contado antes. Tem coisas que são humilhantes demais para serem trazidas à luz; então as deixamos soterradas em algum porão da memória. Não as nomeamos, na esperança de não lhes dar vida. Mas não adianta, se não as batizamos, viram fantasmas que nos assombram para sempre.  Hunsrück, diziam, não é uma língua; é um dialeto, uma corruptela da língua oficial. Desde cedo, as crianças do interior aprendiam a ter vergonha dessa marca linguística. Ela identificava várias categorias socialmente desprestigiadas: éramos colonos e éramos pobres. Não tínhamos a sofisticação de falar uma língua pura. Quando finalmente aprendíamos o português, ficava o sotaque, o que era também uma sentença de fracasso social. É uma colona! É uma colona!
Entrei direto na primeira série, sem prelúdios, sem preparações para enfrentar o hostil universo escolar. E meu ingresso não poderia ter sido mais traumático. Nada em mim era adequado para aquele mundo.  Nem mesmo no recreio eu podia falar a minha língua inferior. Eu brincava de roda, mas não cantava. Eu pulava corda, mas não contava alto. Fui adquirindo muita perícia como muda. Um dia, porém, as palavras realmente me fizeram falta. O hunsrück estava na ponta da língua para manifestar uma urgência, mas não podia pedir para ir ao banheiro na língua proscrita. A ameaça do castigo me paralisou. Adiei a ida para a hora do recreio. Não deu tempo.
Agora, além de todo o meu capital simbólico ser reduzido à pecha de colona que fala o hunsrück, eu ainda seria uma mijona. Acabou ali a minha dignidade e a minha vida social, que sequer havia começado.  Aprendi na pele a constatação empírica de que nada pode ser tão ruim que não possa piorar. A minha primeira série foi um calvário. Aos sete anos de idade, eu já tinha a informação de que seria obrigada àquela penitência até os 14 anos. Nenhum dia a mais, jurava para mim mesma!
 Minha sorte mudaria para sempre quando meus pais se mudaram e eu encontrei a melhor professora do mundo, na 2ª série. Ângela me salvou da ruína da ignorância. Ela salvou a minha vida. Além disso, na nova escola ninguém sabia do meu passado vergonhoso. Podia começar uma vida nova, aos 8 anos. Hoje, pensando sobre tudo isso, me ocorre que talvez o fato de eu ter me tornado professora e linguista seja a minha vingança a essa experiência que tive na escola, com a língua. Vingo-me também ao contar essa história. Libertei o fantasma, dei-lhe nome e sobrenome. Agora ele passeia comigo à luz do dia.
*Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos

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