quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 

O MORTO FOI JULGADO E CONDENADO

Francisco Wanderley Luiz praticou um ato de loucura, como só uma pessoa destituída do governo da própria vontade, devido à desorganização psíquica, poderia fazê-lo. Conhecimentos mínimos das funções psíquicas são suficientes para concluir que somente alguém movido por surto psicótico grave, queira se entregar à morte, preso a explosivos. A literatura psiquiátrica atribui a esse tipo de comportamento a “perda da noção de realidade”.

Mas, a velha imprensa, que parece haver perdido também as noções da realidade assustadora na área das perturbações mentais, não deu a mínima para a pessoa, para o ser humano chamado Wanderley Luiz. O Estadão, em editorial da semana passada, partiu logo para o julgamento do morto, atribuindo-lhe “malévola intenção de explodir o carro em um dos estacionamentos da Câmara dos Deputados e... no perímetro do edifício do STF”. E não contente com isso, enveredou para a adjetivação mais usual no vocabulário de um carrasco, do que no de um juiz, chamando Wanderley Luiz de “agressor” que “por sorte não fez outras vítimas de sua torpeza”.

Depois de julgado e enxovalhado o morto, o texto do editorial espichou suas ilações, nos moldes das conexões que alimentam um juízo universal, no inquérito do fim do mundo, presidido por Alexandre Moraes. A espichada, sem disfarce nenhum, tinha em mira o alvo preferido do jornal, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro: “é incontornável vincular o atentado... a uma diligente campanha de estímulo à violência política no País capitaneada por Jair Bolsonaro...”

O adjetivo “incontornável”, na falta de recursos de redação, foi empregado naturalmente como anteparo, para fugir da injúria, por atribuir a Bolsonaro a “incitação ao crime”, prevista no artigo 286 do Código Penal. Tanto que, ao se dar conta dessa acusação, o jornal não teve escapatória, senão reconhecer que “o ex-presidente, por óbvio, não inaugurou a violência política no Brasil nem muito menos tem relação direta com as explosões.”

Mas, para não deixar assim, de graça, o dito pelo não-dito, o jornal busca refúgio em grotesca desculpa, se desdizendo: “após a ascensão de Bolsonaro à Presidência da República, a violência política passou a assombrar o país em uma escala jamais vista”.

Então, a gente se dá o direito de concluir que a memória do jornal já está ficando desbotada. A violência política, essa sim, verdadeira violência política, em tempos de cadeiradas, todo mundo sabe que foi praticada exatamente contra o próprio Bolsonaro, durante sua campanha como candidato à presidência da República. Violência, sim, porque deixou uma pessoa entre a vida e a morte, enquanto seu autor teve reconhecida “sua incapacidade de entender o caráter criminoso do fato”. Só para refrescar a memória do jornal: o nome do autor é Adélio Bispo.

Nessa linha de indiferença por pessoas acometidas de doenças mentais, talvez se considerando imune à “torpeza” desse mal, a colunista Eliane Cantanhede segue seus empregadores e ainda colabora para a torpe jurisprudência do “juízo universal”, com esse fecho: “isso é coisa de louco, sim, mas louco terrorista que não merece anistia”.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

 

SABES LER?

O jurista Ives Gandra Martins está a responder processo por falta de ética profissional. A Associação Brasileira de Imprensa e o Movimento Nacional dos Direitos Humanos lhe atribuíram a “incitação de militares” à prática de golpe.

A denúncia foi oferecida com base em arquivo encontrado no celular do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o coronel Mauro Cid. “Análise Ideia Ives Gandra” é o título do arquivo no qual se encontra a interpretação do jurista sobre o artigo 142 da Constituição.

Submetida a denúncia ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB de São Paulo ela foi rejeitada, sob o argumento de que o jurista usara do direito de interpretação, direito esse que não lhe é vedado pelo Código de Ética.

Os denunciantes não se conformaram, e interpuseram recurso, que será analisado pelo Conselho da OAB de São Paulo. A alegação contida no recurso é de que “o direito de expressão é limitado pelo Código de Ética.

Mas, vamos começar pelo artigo 142 da Constituição Federal. Ali se lê: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Apesar da prolixidade, esse artigo, um emaranhado que contém mais de cinquenta palavras num só período, é de tirar o fôlego, mas não permite qualquer interpretação que leve à incitação de golpe. Não há glosa, por mais mágica que seja, que permita extrair dela, com aqueles poderes extraordinários próprios de uma linguagem de camelô, uma ideia que seja, de golpe.

O que o doutor Ives Gandra Martins explicou no seu parecer foi o seguinte, que não precisava de explicação: qualquer um dos três Poderes poderá se socorrer das Forças Armadas, quando a garantia da lei e da ordem o exigir.

O Judiciário, por exemplo, em período de eleições, costuma usar dessa prerrogativa, solicitando a presença das Forças Armadas em determinados lugares.

No Código de Ética da Advocacia não pode haver lugar para dislates do tipo “o direito de expressão não é absoluto”. Quem sabe ler, não encontrará, no inc. IX do artigo 5º, reforçado pelo artigo 220 da Constituição Federal, outro adjetivo para “a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”, que não seja esse: “livre”.

O grande mal dos catecúmenos da esquerda é enxergarem fantasmas em toda a parte. Então eles se valem de instituições, como a OAB, para exorcizar os demônios que lhes tiram o sono. E são extremamente cuidadosos com suas inclinações e gostos por determinados costumes. Os egos, costurados pelos mesmos desejos, se valem de partidos políticos ou entidades privadas, a quem a Constituição assegura o foro do Supremo Tribunal Federal. Lá, abstraídos os escrúpulos quanto à duvidosa competência daquela Corte, eles se enxarcam de confiança para se saciar nos fartos ubres da já desvirginada Constituição de 1988.

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

 

UM EDITORIAL A SERVIÇO DO VITIMISMO

A velha imprensa disfarça, mas não consegue esconder sua repulsa por Jair Bolsonaro e todos aqueles a quem ela se refere, em tom depreciativo, como “bolsonaristas”. Critica o Lula, sim, mas, quando se trata do Bolsonaro, ela resvala para a desqualificação pessoal, ainda que dissimulada com eufemismos, abandonando a verdadeira glosa jornalística, que pode ser severa, sem deixar de ser prudentemente criteriosa. Se olhassem para o próprio umbigo, aqueles órgãos de imprensa não sucumbiriam à fraqueza de mostrar seus defeitos através de editoriais tendenciosos.

“Primus inter pares” nessa parte da imprensa que se infla de grandeza, o Estadão, em editorial encharcado de superioridade moral, soando a palmatória do mundo, investiu na semana passada contra o governador Tarcísio Freitas. Em entrevista para a CNN, segundo o próprio Estadão, o governador dissera: ¨teve o salve, houve interceptação de conversa e de orientações que eram emanadas de presídios por parte de uma organização criminosa, orientando determinadas pessoas em determinadas áreas a votarem em detDIREITOerminados candidatos”.

Desse dito acima, atribuído ao governador, o jornal concluiu que ele “deixou-se guiar pela cartilha indecente do bolsonarismo no dia do segundo turno da eleição para a Prefeitura de São Paulo, ao vincular Guilherme Boulos (Psol), o adversário de seu candidato, prefeito Ricardo Nunes (MDB), ao PCC”.

Como se vê, o jornal miou palavras que não saíram da boca do governador. De qualquer leitor que conheça o vernáculo não se pode tirar o direito de perguntar: será isso coisa da Inteligência Artificial ou é burrice natural mesmo?

Ao contrário do que diz o Estadão, o entrevistado teve o cuidado de não citar nomes, quer de candidatos, quer de partidos, quer da “organização criminosa”.

O próprio jornal produz argumentos para suas contradições, informando que “o governador foi questionado por jornalistas sobre um comunicado emitido pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, que interceptou supostos bilhetes assinados por membros do PCC orientando o voto em algumas cidades.” Mas, atesta solene ignorância em administração pública, ao cobrar silêncio do governador sobre o tema. Ora, as secretarias são braços do poder e do dever do governador. Se o governador “foi questionado” sobre ato de sua administração, não poderia ele negar resposta.  E o fez exatamente com a discrição que o momento recomendava: sem citar nomes.

O assunto já era “de domínio público”, segundo informação do próprio jornal, referindo que “os tais bilhetes” tinham sido “publicados no dia anterior pelo portal Metrópoles”. Então, não foi conversa cavada com a finalidade específica de angariar votos em favor do candidato Ricardo Nunes.

De tudo isso o Estadão extraiu a seguinte conclusão: “não há nada que pareça justificar a atitude do governador, que a um só tempo desrespeitou o cargo que ocupa, o processo eleitoral e o adversário, tudo o que não pode acontecer numa democracia...”

Será preciso lembrar aos editores do jornal que o “direito de expressão” ainda não foi riscado da Constituição e que “democracia” é um regime de governo, e não um manual de postura política?

 

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

 

 O RIDÍCULO EM ÚLTIMA INSTÂNCIA

O único instrumento indispensável para a construção do Direito, através de juízos de valor, é o pleno domínio da linguagem. E isso, por uma razão muito simples: a interpretação da lei que, no silogismo jurídico, é a premissa maior, exige esse domínio. Assim, o conhecimento pleno da língua portuguesa está para o Direito brasileiro, como um instrumento deve estar para a orquestra: bem afinado.

Nos últimos tempos, considerado o idioma assim, como instrumento, tem ocorrido desafinação na orquestra do Supremo Tribunal Federal, que um dia foi chamado de Pretório Excelso por algum gongórico puxassaco.

Olhem essa publicação no site do STF: “O Supremo Tribunal Federal definiu, nesta quinta-feira (17), que a Declaração de Nascido Vivo (DNV) expedida pelos hospitais no momento do parto de uma criança nascida viva, deve utilizar termos inclusivos, para englobar a população transexual.”

Segundo o mesmo site, a decisão foi proferida na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ajuizada pelo PT, sob alegação de que transexuais com órgãos reprodutores femininos, mas nomes masculinos, não recebiam atendimento médico de ginecologia e obstetrícia, e a transexuais com órgãos reprodutores masculinos, mas nomes femininos, eram negados atendimentos em urologia e proctologia. O fundamento da ação foi violação dos direitos à saúde, à dignidade e à igualdade.

Em liminar, Gilmar Mendes ordenou ao Ministério da Saúde a substituição do termo “mãe”, pelo de “parturiente” no DNV. Em julho de 2024, a ação foi julgada procedente. Segundo o site do STF “no voto o ministro Gilmar Mendes observou que, após o ajuizamento da ação, o SUS mudou o cadastro do DNV, e, com isso, considerou inicialmente que o STF não teria mais de discutir esse ponto”. Mas, ainda conforme o site, “o ministro Edson Fachin ponderou que, como a troca se deu em caráter administrativo, poderia ser desfeita se não houvesse uma ordem judicial para torná-la obrigatória.”

Se Gilmar já havia ordenado em liminar a substituição do nome de “mãe” por “parturiente” no DNV, evidentemente “a troca não se deu em caráter administrativo”. E, para atender ao dislate do Fachin, Gilmar Mendes fez o pior: ordenou a inclusão das opções “parturiente/mãe” e “responsável/pai” naquele documento.

Ora, nenhum vocabulário registra outro significado para “parturiente”, que não seja “mãe”. O único modelo de filho que não foi parido por mãe, se perdeu. Javé não revelou o truque de produzir bípede falante com barro. E mais: ao nascer uma criança, o pai é, automaticamente, o “responsável” por ela, salvo se for desconhecido ou já falecido.

Será preciso avisar aos berros ao STF que ele não tem competência para modificar as leis 12.662/2012 e 6015/73, nas quais são regulados, respetivamente, o DNV e os Registros Públicos? Será preciso avisar que elas só exigem o nome do pai e da mãe como dados relativos à paternidade e à maternidade do recém-nascido? Outra coisa: ninguém está obrigado a apresentar certidão de nascimento para obter prestação de serviços de saúde do SUS.

Moral do acórdão: confundiram o cólon sigmoide com as têmporas...

 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

 

A FÉ NÃO REMOVE MONTANHAS, MAS MOVE MULTIDÕES

O homem criou a Internet à sua imagem e semelhança: somos uma rede, com chips próprios, denominados neurônios. Os quase 100 bilhões de neurônios, armazenados em nosso cérebro, se comunicam através de, aproximadamente, 100 trilhões de sinapses. As sinapses, etimologicamente formadas pelo prefixo “syn” (sigma, upsilonn, ni) do grego, que indica ligação, união, exercem a função de condutores das mensagens entre os neurônios, os impulsos nervosos.  Funcionam como roteadores, seja através de reações químicas, seja por estímulos elétricos, que movimentam fluxos de íons entre as células. É essa rede de neurônios, interligados por sinapses, a responsável por nossa consciência e nossos sentimentos. E nessa dinâmica neurobiológica está embutida a religiosidade, a crença, também chamada fé, de que não abre mão a maioria absoluta da humanidade.

Segundo pesquisas publicadas na Biological Psychiatry, o circuito cerebral que proporciona a manifestação da fé está localizado numa parte bastante primitiva do nosso cérebro. Donde se pode concluir que, antes de chegar ao estado atual de “homo sapiens”, no curso de sua evolução, o animal humano já tinha propensão para acreditar em algo que não conhecia, algo materialmente impalpável, criado por suas imaginações. Ou seja, antes mesmo de surgirem as “religiões”, que são instituições organizadas com vistas à regulamentação das crenças, o homem já reunia condições para aceitar doutrinas e produzir fantasias. Que o diga a riqueza da mitologia, fonte na qual algumas religiões se abeberaram.

Favorecida por essa matéria biológica, a religiosidade foi dominando o ser humano, sem muita dificuldade. Não é por outra razão que se acumulam multidões em Meca, na praça de São Pedro, em Fátima, em Lourdes e por aí afora. Não poucas vezes, a realidade da vida, a pesada soma dos acasos ou a impensada ousadia da criatura humana levam a tragédias, para as quais contribui, contraditoriamente, a fé. Não passa ano sem que se tenha notícias de pessoas que morrem a caminho de Meca. O calor escaldante da Arábia Saudita, com temperatura que pode chegar a mais de 50º à sombra, responde pelo excessivo número de mortes. Nesse ano, segundo a agência de notícias AFP, morreram pelo menos 922 pessoas.

No Brasil, volta e meia acontecem acidentes trágicos com ônibus transportando pessoas que se dirigem a eventos religiosos. Na semana passada, a caminho da romaria da “padroeira do Brasil”, pessoas morreram atropeladas na Via Dutra. No Santuário, onde se acumulavam cerca de 35 mil pessoas, o Arcebispo de Aparecida orou, nesse vernáculo parecido com o da Dilma: “ó Mãe, Mãe das flores, tornai o mundo um grande jardim, pela graça da ecologia, que és também a Mãe da Amazônia, e aqui estão os biomas esperando a própria terra a ser cuidada e respeitada”.

Sendo a fé um dispositivo cerebral primevo, nem todo “homo sapiens”, inspirado pela razão, a usa. É inexplicável a ineficácia dela na proteção aos devotos, como inexplicável é o motivo pelo qual a Senhora Aparecida esperaria a oração do arcebispo para, só então, começar a proteger a Amazônia...

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

           O ABSURDO DOS ABSURDOS

A estupidez do Código Eleitoral se escancarou em São Leopoldo: o candidato mais votado para vereador e o terceiro colocado na apuração não foram incluídos entre os eleitos. Não que tenha havido irregularidades ou impugnações. Tamanho despautério se deve aos artigos 106 e 107 da Lei 4737, Código Eleitoral, de 15 julho de 1965, que pariu o quociente eleitoral.

Para quem não sabe: essa lei, do tempo do regime militar, elaborada especificamente para garantir maioria legislativa ao governo, traz a assinatura do então presidente, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.

Tal lei deveria ter sido limitada ao tempo necessário para garantir sua finalidade, dada a natureza do regime de governo então vigente. Mas, quer por ignorância dos legisladores, quer porque os governantes, seja em que regime for, são movidos pela embriaguez do poder, ela foi mantida.

Em 1988, entre vivas e foguetes, foi promulgada a Constituição do Ulysses Guimarães, como um esplêndido modelo de democracia, trazendo de volta para o Brasil os valentes prófugos que se borravam de medo do governo militar. Nela estabelece o parágrafo único do artigo 1º: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. E, para completar e reforçar a ideia de que se trata de um regime democrático, cujo titular é o povo, diz o artigo 14: “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos...”

Então surge a pergunta: se, por ordem expressa da Constituição, o voto direto e secreto tem “valor igual para todos”, a que se deve a distinção entre os que votaram com a sigla do partido A e os que o fizeram com a sigla do partido B? Se o voto é o único instrumento que serve para o exercício do poder, por que só se aproveitam dele os partidos políticos, quando o titular da soberania é o povo?

A proporcionalidade da representação legislativa não está prevista expressamente na Constituição de 1988. Em razão disso, os artigos 106 e 107 do Código Eleitoral perdem a razão de ser, porque excluem uma parte do povo do exercício do poder, através de uma diferenciação proibida. Além de desqualificarem o conceito de democracia, estabelecido no parágrafo único do art. 1º e no artigo 14 da CF, aqueles dispositivos constroem o absurdo dos absurdos. Assim: os votos conquistados pelos candidatos mais votados são válidos para a formação do quociente eleitoral, mas ao mesmo tempo têm o desvalor de nulos, se o partido deles não alcançar aquele coeficiente, atingindo-os com uma inelegibilidade não prevista no §4º do artigo 14 da Constituição Federal.

“In claris cessat interpretatio” reza um secular axioma latino. É desnecessária a interpretação daquilo que está claro. Basta saber ler sob o ângulo teleológico, quando se trata de dispositivo constitucional. Se o poder é do povo, instrumentalizado pelo voto, “com valor igual para todos”, só a ganância pelo poder, ou o analfabetismo funcional, explicam o “quociente eleitoral”.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

 

O SILÊNCIO É OURO

Antigamente a gente pensava que da boca de um juiz só poderiam sair palavras sábias, torneadas pela circunspecção e pelo recato. O cargo por ele exercido impunha respeito. E o primeiro a respeitar esse cargo era ele, o juiz. O magistrado se considerava a si mesmo o melhor homem para exercer o múnus jurisdicional. Por isso tinha que zelar pela sua imagem, que era a imagem da Justiça. Quer dizer, o juiz, como todo o ser humano, era dotado de um ego que o fazia gostar de si mesmo, mas essa relação não se esgotava nele.

O silêncio sempre foi o melhor exercício para desenvolver a sabedoria. O sábio ouve, recolhe as palavras de seu interlocutor, e medita. Desse modo vai enriquecendo as premissas com as quais poderá formar juízos de valor inteligentes.

Sim, é bom lembrar que a missão precípua dos juízes é a de emitir juízos de valor que interessam à sociedade, porque outra não é a finalidade da Justiça, senão tornar harmônica a convivência social. Dessa missão os juízes tinham consciência e se haviam com a reserva e o recato necessários, para não manifestar opiniões que os pudessem comprometer, na hora de dizer o Direito. Daí nasceu aquele velho ditado: o juiz só fala nos autos.

Mas, a fila da vida anda e vai mudando o mundo. O que era ontem, hoje já não é mais. A força dos egos é o que, muitas vezes, movimenta a engrenagem social. E aí, certos valores vão se deteriorando.

Hoje, no comportamento de vários juízes, o ministério jurisdicional tem se revelado menos como missão institucional do que como estrato social distinto, com vantagens e direitos que não alcançam ao comum das pessoas. Essa condição ceva o ego de alguns togados de tal forma, que os faz se sentirem acima dos demais seres humanos.

Em entrevista ao Valor Econômico na semana passada, o senhor Luiz Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, abriu sua boca cheia de dentes, para dizer que “ a total recivilização do país” é o legado que ele pretende deixar para o seu sucessor.

Sim, senhores, temos aí um novo Messias. O senhor Barroso quer mudar o país, ao que parece, à sua imagem e semelhança.

“Recivilização”. Procurem essa palavra no dicionário. Não a encontrarão, porque a etimologia das palavras “civilizar” e “civilização” (do latim “civilitas”) constitui o núcleo de sua morfologia. A civilização é dinâmica, levada pelas mutações sociais. Mas, jamais pode voltar à estaca zero, para se recompor de outra forma.

O senhor Barroso não tem autoridade para mudar a raiz de conceitos pétreos, como o de “civilização”. A menos que ele tenha “incorporado” o espírito do seu guru, o curandeiro João de Deus, a quem ele atribui a qualidade de “extrair das pessoas o que de melhor elas têm”.

Exatamente, por tirado de mulheres indefesas o que de melhor elas tinham, o João de Deus foi parar na cadeia. Mas, ao que tudo indica, continua inspirando o senhor Barroso.

 

 

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

 

               RETRATO FALADO

Agora, para o Estadão, ficou bem claro quem é o Lula. O retrato do ex-torneiro mecânico, que trocou essa produtiva profissão pela ambição de carreirista, foi pintado com impiedoso realismo no editorial intitulado “O Umbigo do Lula”, na edição do dia 27 último.

Para compor literalmente a imagem do ambicioso político, a editoria pinçou substantivos e adjetivos que revelam a personalidade do doutor em filosofia do ridículo, com diploma conferido pela natureza.

Não são incomuns, na velhice, certas qualificações negativas que comprometem os seres humanos como integrantes do grupo social. Incomum é acúmulo de várias delas numa só pessoa. Principalmente quando essa pessoa é tida como líder numa nação. Do texto jornalístico transparece essa intenção: a de mostrar que o Brasil não pode ser exposto no concerto internacional como país dominado pela pobreza intelectual de um “envelhecido líder progressista”.

 Narcisismo, cinismo, sectarismo, demiurgo, megalomania, incapacidade de articulação, falta de humildade, quimeras irrealistas, cinismo em estado bruto são palavras usadas no editorial, que desembocam no “comportamento grotesco”, duma “leviana e irrelevante figura”.

Não se trata de execração pública, descompostura banal, ou de um xingamento de baixo calão, como a muitos poderia parecer, mas do puro e simples retrato social do Lula, tal como ele é. Trata-se da imagem de uma criatura, que é analisada e considerada estritamente do ponto de vista de sua representação na sociedade.

Qualquer cidadão pode acumular qualificações negativas, porque a perfeição não é um atributo imanente à natureza animal. Mas, todo o cidadão, escolhido que seja como representante de um grupo social com a relevância de uma nação, tem mais a obrigação de se comportar como modelo de virtude do que enxertar no cargo as fraquezas, as impropriedades e, sobretudo, as frustrações de seu ego.

Para fugir da pobreza, da fome, da miséria que o cercava em sua terra natal, Lula buscou lugar na romaria da esperança, que leva nordestinos para a cosmopolita São Paulo. Lá teve a sorte de ser brindado com um emprego que lhe deu a profissão de torneiro mecânico. Aí, se aproveitando disso, talvez por ser mais atilado do que seus colegas, viu no sindicalismo o caminho para sair do anonimato.

A inclinação natural pela verborragia o levou aos píncaros da associação sindical. Nessa posição, teve o privilégio de dialogar com a classe dos patrões. Foi o primeiro passo para trocar a profissão de torneiro mecânico pela de “carreirista”, da qual não desistiu, enquanto não se tornou presidente da república.

A verborragia lhe serviu de instrumento para que se sentisse o pai dos pobres, o exterminador da pobreza, a esperança dos necessitados, um demiurgo que desfila na passarela do universo, esbanjando graça e harmonia, capaz de terminar guerras na base da saliva. A imagem que fazia de si mesmo o encheu de vaidade.

Mas dessa vez não deu certo. Ao regressar da Assembleia da ONU, onde produziu previsíveis disparates e torrou o dinheiro dos contribuintes com um cortejo de acompanhantes inúteis, o pai dos pobres deu com seu retrato no Estadão.

 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

 

UM CONTRASTE ABISSAL

 A humanidade está dividida em dois grandes grupos: os imprescindíveis e os dispensáveis. Naturalmente, essa divisão comporta inumeráveis subdivisões. Entre os dispensáveis, por exemplo, há os indesejáveis.

No Legislativo do Brasil hoje, a maioria tem seu umbigo como o centro do mundo. Legislam em causa própria, presenteiam-se com benefícios imoralmente legais. Pouco se lhes dá o povo, que serve apenas para apelidar de democracia a grande mamata que só sustenta os poderosos. O Executivo só faz discursos e esbanja dinheiro público nas viagens internacionais de luxo do casal Lula-Janja. O Judiciário, além dos mesmos defeitos explícitos do Legislativo, agora está tomando para si as funções dos outros Poderes. Mas unicamente através de ordens, emitidas por ministros postados com poses de príncipes, dispondo de pajens só para lhes ajustar a toga ou empurrar a cadeira.

O país está há várias semanas com as florestas em fogo, devastando a fauna, a flora, e intoxicando o povo. Mas só agora, por uma ordem não autorizada pela Constituição, um ministro do STF determinou a tomada das providências, até então ignoradas por Lula e pela cambada das FG, CC e dos altos salários.

Agora, em ritmo de eleições, ofensas e agressões substituem argumentos. A animalidade se sobrepõe à racionalidade. São os candidatos, ajeitando seus umbigos para mamarem deitados, nas tetas do erário.

Mas, nem tudo está perdido, porque temos pessoas imprescindíveis. Muita sorte teve, nesse sentido, quem leu a crônica do doutor José J. Camargo, na ZH do dia 17. Colunista em fins de semana, ele teve espaço extraordinário, para comemorar os 25 anos do primeiro transplante de pulmão intervivos, por ele realizado.

É uma crônica pungente, obra de quem sabe escrever. Um menino de  treze anos, atormentado por grave deficiência respiratória, tinha no transplante sua única chance de sobrevivência. Para isso era indispensável a extração parcial dos pulmões de seus pais. No dia do procedimento “relutei em sair da cama, como se fosse possível adiar o medo que me aguardava lá fora”, escreve Camargo.

Nem os deuses resistiriam sem lágrimas à pungência da cena, na entrada do bloco cirúrgico: “o menino ajoelhado na maca e gritando por falta de ar, a mãe chorando porque filho chorava, e o pai tentando, sem conseguir, acalmar os dois”. E continua o colunista: “foi só naquele momento que tive a exata noção do tamanho da empreitada: íamos operar três pessoas da mesma família... e então, perdida a chance de recuar, fomos em frente... Começada a operação, o nível de concentração sobe, e a adrenalina do medo é substituída pela endorfina que brota espontaneamente da pretensa certeza de que, calma lá, essa cirurgia nós sabemos fazer”.

Na peroração, segue uma confissão que poucos ousariam fazer: “sete horas depois, aliviado e exausto, sentei-me no chão, um jeito pessoal de tratar o cansaço. Quando o Felicetti, parceiro de todas as horas, sentou-se ao meu lado, choramos abraçados”.

Aí está a grandeza duma profissão, embutida na pequenez do homem, provando que, por sorte, há criaturas imprescindíveis para a humanidade.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

 

RIO GRANDE DO SUL JÁ NÃO RIMA COM CÉU AZUL

 

Quem deu de olhos no título “De quem é a culpa por queimadas amazônicas”, na coluna GPS da Economia, na edição do jornal Zero Hora do dia 11, certamente não conteve a curiosidade. A fumaça, que tem apagado o tão decantado céu azul, fornecedor de inspiração aos poetas para a rima com o Rio Grande do Sul, está não só enfeiando a paisagem, como causando estragos à saúde do povo, empestando o ar.

Mas, maior do que a curiosidade foi a decepção, com a leitura do texto. Quem esperava pelo menos uma notícia boa sobre o governo petista, com o anúncio de que a polícia e o exército do Lula haviam ganhado a batalha, deitando mão dos incendiários criminosos, se deu mal. Quem se deu bem, foi o mal, que continuará sem castigo, mas castigando, impune, escondido atrás da incompetência do governo federal.

Atentem para a redação da matéria: “faz quase um mês que a fumaça das queimadas na Amazônia – e agora também no Pantanal e em São Paulo – chega ao sul do Brasil. O que gera esse acúmulo raras vezes visto de focos de incêndio é, outra vez, a mudança do clima, provocada por ação humana”.

De todo o dito acima escorre a seguinte conclusão, escrita com todas as letras: “por extensão, todos nós temos responsabilidade nesse drama”.

Sim, é isso mesmo que está ali escrito: nós somos os culpados explícitos. Não há uma palavra sequer sobre os criminosos que atiçam o fogo. É como se os “focos de incêndio” que se alastram desde a Amazônia viessem do nada, como se ninguém os tivesse atiçado, senão a “mudança do clima”, provocada “por todos nós”. Nenhuma palavra sobrou também para o órgão encarregado de zelar pelo Meio Ambiente. O nome de Marina Silva ficou resguardado como se merecesse respeitável silêncio.

Observem: as consequências dos atos incendiários são usadas como premissas de um raciocínio que conclui pela culpa de “todos nós”.  Silogismo assim, mal armado, não compõe juízo de valor, desandando em mera conjectura.

E como soaria estranho culpar exclusivamente o povo, a redação da matéria ainda se submete à inclemência da obscuridade, para pegar Lula apenas de refilão: “essa culpa coletiva não tira o peso da outra acepção da palavra: a de quem tem obrigação jurídica de responder sobre o que ocorre em seu território. O governo Lula prometeu dar o tratamento necessário. Mudou o descaso que havia antes, mas ainda não o suficiente”.

A culpa tem quatro formas: ativa, omissiva, voluntária ou involuntária. Mas, tem um sentido só. Agora a gente fica sabendo que, em se tratando do Lula, ela tem “outra acepção”...

Ah, e como não podia deixar de ser, para Bolsonaro sobrou o substantivo “descaso”.

É assim: para quem não consegue resistir aos “encantos” do Lula, Bolsonaro será sempre o culpado pelos males do país, desde abril de 1.500, mesmo que, no governo dele, o céu azul não tenha deixado de rimar com Rio Grande do Sul.

 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

 

SEXO NA POLÍTICA

A notícia de que o ministro Sílvio Almeida quis gozar indevidamente de seus direitos humanos com Anielle Franco, da Identidade Racial, estourou no dia do sexo.

Não sabiam? Pouca gente sabe da existência dessa data, destinada a lembrar aquele corcoveado sob lençóis, indispensável à perpetuação da espécie “homo sapiens”. Talvez tenham pulado muros, chegando aos ouvidos do pessoal do portal “Metrópoles”, os cochichos apimentados numa reunião de integrantes do governo Lula. Anielle Franco, que é flamenguista até em avião da FAB, teria aproveitado a referida reunião para informar que Sílvio Almeida era maluco por perna de moça. A notícia vazada pelo “Metrópoles”, apareceu no dia 6.

O Dia do Sexo foi criado em 2008 por José Araújo, dono da Inaltex, a que está ligado o preservativo chamado Olla. A ele se juntou Carlos Domingos, da Age, Agência de Publicidade. A data comemorativa serviria muito bem, tanto ao produto, quanto à sua divulgação. E o seis de setembro, ou seja 6/9, não foi escolhido ao acaso. Ele teve o propósito de juntar o número 6 com o 9, em alusão àquela horizontalidade de cabeças inversamente emborcadas nas partes subalternas de um e de outro.

Outra coincidência: os cargos exercidos por Sílvio e Anielle Franco. Ele, à testa dos Direitos Humanos. Ela, regendo a Igualdade Racial. Quer dizer, tudo a mesma coisa. A Igualdade Racial faz parte dos Direitos Humanos. Ou seja, não há Direitos Humanos, sem reconhecimento de Igualdade Racial. Essa interrelação de raiz deve ter mexido com a cabeça e outras partes do ministro, em cujo currículo consta o grau de doutor em Filosofia. Ele não se deu conta de que os dois ministérios só servem como uso do dinheiro dos contribuintes, para pagar alianças eleitoreiras. E se deu mal, querendo juntar as duas pastas em assunto sem o qual não haveria os Direitos Humanos: o sexo.

Nada a estranhar. Foi a filosofia sem lógica do sexo que levou o STF a mudar o gênero das palavras no art. 226, § 3º da Constituição.

Não consta das notícias que Almeida tenha apalpado os avantajados da moça, com seus dedos de doutor em Filosofia e mestre em Direito. Parece que o fraco dele não é a abundância traseira. Segundo a imprensa, o assédio à colega teria consistido em “beijos inapropriados”, com as mãos dele sumindo por debaixo do vestido dela.

Mas, não foi no Ministério que Sílvio Almeida inaugurou sua carreira de alisador de pernas de mulher. Uma organização chamada Me Too já sabia das desvergonhas, mas só referiu denúncias de várias mulheres contra as bandalheiras do doutor, depois que o assunto veio a público,

Uma candidata a vereadora pegou o barco das denúncias andando, para revelar que Sílvio, de quem era aluna, havia apalpado não só suas pernas como as partes adjacentes.

Das preliminares o ministro não tirou proveito. Fez papel de galo que só cisca, cacareja e nada mais. Como seria ele no jogo principal, na coreografia por entre lençóis e travesseiros, mulher nenhuma quis saber.

 

 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

 

HAVERÁ SABER JURÍDICO SEM DOMÍNIO DA LINGUAGEM?

Os gregos foram os primeiros a se dedicar à filosofia; os romanos, ao Direito. Aqueles ensinaram a argumentar e a expor ideias, como expressão de um conhecimento racional e sistemático; esses, lançaram as bases do Direito como ciência, atreladas à dialética.

Dos fundamentos científicos do Direito, elaborados pelos romanos, o mundo jurídico ocidental não abriu mão, durante muitos séculos. Essa foi a base da formação de grandes juristas.

Mas, há cerca de 70 anos, tanto as bases do Direito Romano, como os princípios que norteiam a dialética, começaram a despencar. A exclusão do latim dos currículos escolares desembocou na exclusão do Direito Romano, tal como era administrado nas Faculdades de Direito. As “Facilidades” de Direito, multiplicadas como coelhos pelo Brasil afora, contribuíram para a decadência do ensino jurídico, quando excluíram o latim de seus vestibulares.

Hoje, por exemplo, não haverá, no Supremo Tribunal Federal, um ministro sequer que tenha conhecimento do idioma de Cícero. O máximo a que algum deles se aventura, de vez em quando, é citar qualquer axioma criado pelos jurisconsultos romanos. Os últimos ministros, com sabedoria enriquecida pelo conhecimento do latim, foram João Leitão de Abreu e Antônio Cezar Peluso.

Então, não se pode exigir expressões de impoluta e augusta sabedoria dos atuais ministros do Supremo. E nem de pundonoroso comportamento. Não se pode exigir, por exemplo, que eles conheçam um dos princípios de Direito Processual, que preserva antecipadamente a imparcialidade do juiz, sua equidistância da contenda e dos contendores: ne procedat judex ex officio. Em tradução que, respeitando a letra, se torna mais didática, isso significa: o juiz não pode tomar a iniciativa para a abertura de qualquer procedimento, sobre o qual deva haver pronunciamento judicial.

Os romanos sabiam que a iniciativa é produto de algum impulso e esse, advém de algum sentimento. A imparcialidade do juiz exige que ele não esteja infectado por qualquer sentimento em relação à causa submetida à sua jurisdição. Por mínimo que seja, o sentimento sempre ocupará espaço em operações que exijam raciocínio e domínio de linguagem.

Para provar que, sem latim, a língua portuguesa, único instrumento das operações jurídicas brasileiras, está mais propensa às lições de Paulo Freire do que às de Camões, vai um exemplo. Em sua última decisão, retirando as ameaças a quem usasse o VPN para acessar o X, Alexandre de Moraes escreveu: “em decisão anterior de suspensão do funcionamento do X Brasil Internet Ltda... foi determinado... a intimação...para cumprimento no prazo de 5 (cinco) dias, devendo comunicar imediatamente o juízo, das empresas...”.

“Foi determinado a intimação”. Para regras básicas de concordância não há lugar na cultura do senhor Moraes? E na oração “devendo comunicar imediatamente o juízo”, onde está o sujeito? Ou onde está o objeto, considerando-se que o verbo “comunicar” é transitivo direto e indireto?

Entre candidatos à toga no STF, haverá quem responda, na ponta da língua: o sujeito está em Brasília. E o objeto? A resposta fugidia será: sabe-se lá onde o Moraes meteu o objeto...

 

 

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

 

O PODER DOS HACKERS

Levantada pelo jornal Folha de São Paulo, uma notícia surgiu como bomba, na semana passada. O gabinete do ministro do STF Alexandre de Moraes, segundo o jornal, teria usado mensagens de modo “não oficial”, para que a Justiça Eleitoral produzisse relatórios sobre a atuação de aliados de Jair Bolsonaro. Esses documentos teriam servido para embasar decisões do referido ministro no famigerado inquérito das fake News, levado a efeito no Supremo Tribunal Federal.

O texto jornalístico pareceu meio receoso, usando uma expressão amena, ao afirmar que os assessores teriam usado mensagens “de modo não oficial”.

No mundo de hoje, graças à tecnologia e ao domínio dos hackers, é muito difícil tapar o sol com a peneira: falou ao telefone ou escreveu em computador, o sujeito estará exposto a chuvas e trovoadas. Como está agora o tal ministro, numa situação que se assemelha a excremento de passarinho sobre a careca.

O Gilmar Mendes, aquele que, para o senhor Barroso, “é uma mistura do mal com o atraso”, em sessão do STF, cuja pauta principal parece ter sido a plena defesa do espírito de corpo, disse que “a censura que se tem dirigido ao ministro Alexandre, na sua grande maioria, parte de setores que buscam enfraquecer a atuação do Poder Judiciário... e qualquer tentativa deliberada e infundada de intimidar ou desacreditar um ministro do Supremo deve ser veementemente repudiada”

Ora, o Poder Judiciário não precisa ser “enfraquecido”, ninguém consegue deixá-lo mais fraco do que já está. Que o diga quem precisa de Justiça, quem morre esperando por ela. E mais: ninguém precisa tentar “desacreditar” ministros daquela Corte. A Corte é que deve se fazer acreditar, operando justiça dentro da lei, seguindo o devido processo legal, e não deixando margem para supor parcialidade, favorecimentos. Se quiserem se tornar juízes respeitáveis, os ministros devem se desatrelar da ambição de serem personagens da história como figuras públicas intocáveis, donos absolutos da verdade, imunes a críticas.

Por seu turno, Barroso, o acima mencionado senhor, que até para xingar faz poesia, apresentou, ao distinto público, certificado de seus conhecimentos de Direito Eleitoral. Na referida sessão em que se levantavam vozes para engrossar o espírito de corpo, (“de corpo”, não pensem outra coisa) Barroso atribuiu a Moraes o “poder de polícia”, constante do artigo 41 da Lei nº 9.504/97.

Melhor seria que Sua Excelência tivesse calado, para não enfraquecer o Judiciário. No § 1º do artigo 41, a Lei 9.504/97 estabelece: “o poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido pelos juízes eleitorais e pelos juízes designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais. E o § 2º: “o poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia”...

O “poder de polícia” tem limites: seus detentores são os juízes eleitorais, com a finalidade de “inibir práticas ilegais” na propaganda. O presidente do TSE não é juiz eleitoral. Na instância colegiada, as funções do “juiz eleitoral” são cometidas ao Tribunal. E “inibir” nunca foi sinônimo de punir, ou instruir inquéritos criminais.

 

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

 

        A MORTE SORRATEIRA

A mudez da caixa preta do avião tristemente despedaçado em Vinhedo, provavelmente dirá tudo: não houve comunicação de pouso de emergência. A tragédia não se fez anunciar. A trama dos acasos, que urdem fatalidades, não permitiu qualquer tentativa de salvação.

Ninguém teve tempo, nem consciência, para sofrer a pressão torturante do pavor, a gélida agonia do fim. A morte chegou sorrateira, de improviso. Veio para colocar um ponto final inesperado em histórias de amor ou de ódio. Nem ela, a morte, se concedeu o tempo de aguçar em suas vítimas o terror diante de uma dor física inevitável e da certeza de que estava tudo acabando.

Ninguém teve tempo, nem consciência, para se desfazer de todas as preocupações, traumas, carências, culpas e medos porque, antes desses, o que os levara para aquela viagem tinham sido sentimentos impulsionados pela razão de viver.  E foram esses sentimentos que os acasos reuniram numa viagem, cujo ponto final seria a morte.

Ninguém teve tempo, nem consciência, para notar que a razão começava a se embotar, ao impulso de uma vertigem. Ninguém teve tempo, nem consciência, para se sentir asfixiado. Ninguém teve tempo, nem consciência de se sentir entorpecido com a indiferença pela vida ou pela morte.

Todos, até aquele momento, só se ocupavam de alegrias, expectativas, sonhos, planos, desejos e esperanças. Como a menina, de apenas três aninhos, embalada na alegria de ficar ao lado do pai, no dia dele. Como o menino que viajava com a mãe, a avó e o cachorrinho. Como as médicas, que ali estavam, seduzidas pelo aperfeiçoamento em pesquisas para escorraçar a morte de pacientes seus, que depositavam nelas a esperança de viver. Eram médicas especializadas em oncologia, o mais temível e terrível anúncio do fim da vida. Todos estavam no mesmo avião, mas cada qual com o seu destino, seu objetivo e suas razões para fazer da vida um instrumento de alegria.

O avião, aquela potência metálica gerada pela inteligência humana para encurtar distâncias na busca de conhecimentos científicos, negócios, encontros sentimentais e tantas outras necessidades humanas, se transformara, num átimo, em mísera folha de papel que, desgovernada pelo vento, girava em torno de si mesma, envolta em chamas, destruindo vidas, das quais sobraram apenas saudades que só as lágrimas conseguem descrever.

A súbita mudança de posição da aeronave, de horizontal para vertical, em altíssima velocidade, despencando em parafuso na direção do solo, deve ter desencadeado vertigem em todos seus ocupantes, independentemente da despressurização. A consciência de estarem vivos deve tê-los abandonado, desaparecendo em frações de segundos, sem lhes dar tempo para qualquer sensação física ou psíquica.

Ninguém teve tempo de pedir perdão ou de dizer adeus. Ninguém teve medo e nem consciência, para recitar sequer uma oração suplicante, resumida em duas palavras, ainda que fossem ditadas mais pelo impulso do desespero do que por fé: “meu Deus”!

Ninguém teve tempo e nem consciência para saber que estava morrendo. Esse é o único consolo, que a dor de quem os perdeu para sempre deixa escapar.

 

segunda-feira, 22 de julho de 2024

 

BAGUNÇA INSTITUCIONAL

 

Raríssimas são as notícias alusivas a decisões do Supremo Tribunal Federal que, se não causam estupefação, produzem amargas críticas àquela Corte. E a razão disso é uma só: de um momento para o outro, parece que seus membros, os ministros, esqueceram regras primárias de hermenêutica jurídica. Ou, talvez, seduzidos pela ambição de participarem como protagonistas principais da história deste país, se aventuraram a iniciativas que não cabem em suas atribuições.

O primeiro passo para que a Constituição fosse colocada em plano inferior ao das ideias dos ministros foi dado por Luiz Fux, quando expungiu a literalidade do artigo 226, § 3º do texto promulgado em 1988. Ali está escrito em palavras inteligíveis, para quem sabe ler: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

A exegese jurídica exige proficiência e erudição. Ela não permite violar a expressão literal da lei, para dali extrair um juízo de valor que não esteve nas cogitações do legislador, máxime uma acepção evidentemente adversa aos elementos mórficos da palavra.

O STF, nesse caso, não interpretou o texto constitucional, como era de seu dever, mas criou uma ideia não contida na Constituição. Mais ou menos assim: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre  pessoas de qualquer sexo como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

O texto constitucional continua o mesmo. Nada nele foi modificado. Sem que nenhuma lei alterasse as regras do casamento estatuídas no Código Civil, o CNPJ pegou carona na bagunça institucional, fazendo também o que lhe não cabia: editou normas para permitir o que nem a Constituição, nem o Código permitem.

E como ninguém reclamou, porque essa “reforma” caiu no gosto e nos regalos de muita gente, o STF continuou atropelando o artigo 2º da Constituição Federal, se arrogando uma atribuição que não lhe é outorgada legitimamente: legislando e se intrometendo na administração, da competência do executivo.

No governo Bolsonaro, a oposição, sem número para fazer frente ao Executivo, usou do Supremo Tribunal Federal para impedir até a nomeação de ministro. Agora, enquanto Lula e Janja vivem nababescamente como rei e rainha à custa do contribuinte, e o Legislativo só se interessa por verbas e cargos, o Supremo, à falta de quem lhe apare as unhas, autoriza, através de “normas”, o pagamento de diárias a seguranças a seus ministros, quando esses viajam ao exterior.

Cobrado pela imprensa, Luís Roberto Barroso não menciona lei, mas diz que a hostilidade e a agressividade contra os ministros “justificam” tais pagamentos. Na mesma ocasião, indagado sobre o inquérito sem fim e sem limites que investiga supostas ameaças a ministros, ele se perdeu, tentando explicar o inexplicável: “não gosto da continuidade (de inquéritos no STF), mas é inevitável, é preciso punir”.

Então agora a missão do Supremo Tribunal Federal não é mais a de julgar. Se sua finalidade é só punir. O Tribunal se transformou em cadafalso.

 

quarta-feira, 10 de julho de 2024

 

INDIGESTA APOLOGIA

Sob o título “A Luz de Lisboa”, em artigo publicado no Estadão, o advogado paulista Nicolau da Rocha Cavalcanti se entregou à inglória tarefa de elogiar a realização do tal de “Fórum Jurídico de Lisboa”, aqui apelidado de “Gilmarpalooza”.

Tamanha temeridade só podia colher, como colheu, uma enxurrada de exacerbadas e desairosas críticas ao referido bacharel, que poderia ter dormido sem elas.

O texto do advogado, realmente, soa incomodamente como deboche ao pensamento de todos quantos sabem como, por quem, e em que circunstâncias é realizado aquele evento. Quer como peça literária, quer como juízo de valor, a publicação não resiste à mais perfuntória análise.

O próprio título revela que o autor do artigo não é dotado de respeitável criatividade. “A Luz de Lisboa” é um tema de que se têm ocupado, há muitos anos, poetas, escritores e vários artistas de outros ramos. Movida por tal inspiração, a direção do Museu de Lisboa usou-a para assim denominar grandiosa exposição que reúne obras de pintura, desenho, fotografia, cinema, vídeo, documentário e literatura. Sem dizer que o título não era de sua lavra, fruto de seu talento literário, o advogado Cavalcanti se valeu da poética expressão para ilustrar seu artigo.

É evidente que a deficiência de criatividade dificulta a elaboração de argumentos, de razões deveras convincentes. Então lá veio ele dizer que “sendo um espaço de reflexão e debate, a distância permite ver, com outras luzes, o objeto discutido, o Brasil”.

Ora, o Brasil é um país, simplesmente. Que tipo de discussão exigiria um país? O que pode ser objeto de discussão, sim, é a realidade vivida no país, a realidade política, social, financeira, étnica. Mas a realidade não pode ser vista, ou pintada, “com outras luzes”, como a “luz de Lisboa”, por exemplo, à distância, sob pena de ser tida como uma realidade disfarçada.

Toda a dialética se torna indigente, quando se socorre de presunções como premissas para juízos de valor. Ao afirmar que “nos tempos atuais de embrutecimento, realizar esse fórum no Brasil de forma serena e pacífica tornou-se simplesmente  impossível”, o advogado articulista navega numa afirmação vazia. Embrutecimento? Como assim? Quem está praticando “embrutecimento”?

O advogado faz circunvoluções para não chegar ao ponto crucial do “Gilmarpalooza”: os gastos públicos, as viagens e diárias com guarda-costas pagas com o dinheiro do contribuinte. A imensa comitiva que voou para Lisboa foi composta, por “160 autoridades dos três Poderes e outros 20 assessores”, segundo a UOL Notícias.

Quem pagou isso tudo? O advogado não diz. Quando se trata mandar às favas o artigo 37 da Constituição Federal, é melhor calar, porque não há explicações que possam ser consagradas como argumentos.

Mas há em Portugal jornalistas atentos para os desvios das funções públicas.  O colunista João Carlos Batalha, da revista lisboeta Sábado, em publicação sobre o “Gilmarpalooza”, intitulada “O Festival do arranjinho”, alude à “orgia da promiscuidade” no evento.

Por sorte ele não é brasileiro, nem mora aqui. Senão, já estaria enquadrado no “inquérito do fim do mundo” por crimes antidemocráticos...

 

sexta-feira, 5 de julho de 2024

 

NOTÓRIA INSCIÊNCIA

 

Em matéria publicada sobre a questão das drogas, que esteve em julgamento no STF, a Zero Hora traz a público as principais circunstâncias que cercam a referida causa.

Como diz aquele ditado, o que começa mal, não tem como terminar bem. A ação foi proposta pela Defensoria Pública de São Paulo, questionando a constitucionalidade do art. 28 da Lei das Drogas. Tratava-se da condenação de um homem que portava consigo três gramas de maconha.

O Recurso Extraordinário só pode analisar questões de Direito atinentes à Constituição Federal. A condenação pelo porte de 3 gramas de maconha é uma questão exclusivamente de Direito Penal, que depende de provas. Se houve ofensa foi ao Direito Penal e não ao Constitucional. Extrair a fórceps, desse fato, uma questão de Direito Constitucional, exige um destrinche pior do que separar minhocas entranhadas em prazeroso processo de suruba.

Mas, isso é o que mais se faz nesse país: o que menos se respeita é a lei. Como o STF nada encontrou de inconstitucional, procurou uma saída pior, para remendar o erro de julgar o que não era de sua competência: resolveu modificar o texto do art. 28 da Lei de Drogas, para suprir lacunas ali deixadas pelo legislador.

A ZH entrevistou “especialistas” no assunto, uma professora da UFRGS e um da PUC. Para a professora, a lacuna na lei “colabora para problemas sociais, como o racismo, e dificulta o tratamento de dependentes químicos que, em certos momentos, podem ser enquadrados como traficantes”. Segundo o professor, a lacuna é suprida pela visão subjetiva dos juízes, gerando “uma discricionariedade absurda”. E exemplifica:  um rico, se apanhado com 50 gramas de maconha, é considerado “usuário”. Já um pobre, flagrado com 10 gramas, é condenado traficante.

Nenhuma palavra disseram os professores sobre a competência do STF para julgar a questão. Nenhum mencionou a inconstitucionalidade da lei.

O problema, se assim é, está na interpretação dos fatos. E a Constituição nada tem a ver com isso, porque a questão é de fato e não de Direito, já que o exercício da jurisdição faculta interpretação subjetiva. E se o problema está na lacuna da lei e não na Constituição, compete ao Legislativo resolver e não ao STF.

A errônea interpretação dos fatos não gera inconstitucionalidade nas decisões judiciais. Para isso há os recursos e, além desses, a ação rescisória, instrumento processual próprio para corrigir erros de fato.

Mas, mesmo não sendo o STF competente para julgar a questão, oito de seus ministros a colocaram sob sua jurisdição. De certo, se consideraram escolhidos para lavrar a crônica da humanidade, na condição de arautos do humanitarismo. Agiram como se a toga fosse régua moral para medir a equanimidade, ou alavanca para colocar no mesmo nível todas as diferenças. E quando usaram a balança da justiça para pesar maconha, liberando 40 gramas de alucinógenos para quem quiser, fantasiaram de certeza suas opiniões, sem argumentos científicos.

O julgamento foi certamente festejado pelos traficantes: mais de 50 baseados para cada portador alimentarão consideravelmente seu comércio.

 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

 

UM PODER ACIMA DE TRÊS

A organização previa pontualidade nos pormenores. O avião, trazendo 30 milhões de reais, depois de aterrissar, iria para o hangar, onde um carro-forte receberia a milionária carga. Então, por volta das 19:30 eles se dirigiram ao hangar. Abrigados nos veículos com dísticos da Polícia Federal e fardados como integrantes daquela força, tiveram livre acesso ao aeroporto, sem qualquer exigência que os inibisse. A essa altura dos acontecimentos, a Polícia Federal é a longa mão de ferro do Supremo Tribunal Federal, sempre pronta para cumprir ordens de lá emanadas. Então, não há quem se atreva a pedir identificação ou barrar-lhe a entrada, sob pena de responder por “crime antidemocrático”.

Por isso, não foram necessárias muitas palavras, nem grandes explicações aos vigilantes do carro-forte. Ao verem aqueles fuzis, já com dedos nos gatilhos apontados para eles, não tiveram tempo sequer de se preparar para uma desgraça. Ensaiaram uma troca de tiros mas, em número menor do que aqueles senhores fardados com uniformes da Polícia Federal, nem mesmo abrigados dentro do carro-forte blindado, puderam lhes fazer frente. Enquanto alguns dos recém chegados se apossavam dos malotes com o dinheiro e os jogavam para dentro dos veículos que os haviam trazido, outros tinham como alvo os vigilantes.

Pilotos e funcionários do aeroporto, tiritando até a medula dos ossos, foram então tomados como reféns, com a chegada da Brigada Militar, que exigiu fogo cerrado de ambas as partes. Usando armamento mais pesado e tendo reféns como escudo, os assaltantes disfarçados em policiais fizeram tombar a primeira vítima, um sargento da Brigada. Não podendo deixar sem socorro o colega, os brigadianos foram obrigados a uma trégua momentânea. Disso se aproveitaram os assaltantes para encetar fuga. Mas um de seus veículos foi atingido, sendo morto seu ocupante. Dos 30 milhões, 15 se encontravam nesse veículo.

Isso só acontece num país onde “bandalheira” é sinônimo de “governabilidade”. Onde projetos do Executivo são aprovados na proporção dos cargos oferecidos aos partidos políticos e da verba destinada aos parlamentares, por meio de conversas em linguagem de cifrão, com aberto desrespeito ao dinheiro dos contribuintes. E a Justiça, de sua parte, descomprometida com a realidade, usa os sentimentos como premissa de   seus juízos de valor. Em primeiro lugar, os “direitos humanos” dos bandidos. Depois, podem ser analisados eventuais direitos das vítimas do crime ou da dor que ele provoca. Mas, bandido tem direito a prisão confortável, a visitas íntimas, a audiência de custódia, a saidinhas de Páscoa, de Natal, no dia da mamãe ou do papai...

Quando os Poderes da República, não conseguindo dominar o crime, permitem o comércio de pequenas porções de alucinógenos que, multiplicadas por milhões, fomentam o tráfico proibido, além de infligirem lancinantes torturas, causadas tanto pelo consumo como pela abstinência da droga, às famílias dos dependentes, formando embriões de violência e criminalidade.

Então a morte anunciada pela incompetência estatal se cumpre: enquanto policiais são equipados com vulneráveis coletes antibalísticos, o crime se arma com fuzis capazes de dividir um elefante pelo meio.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

 

A IMORALIDADE DA INSTITUCIONALIDADE

Não foram as redes sociais, mas o jornal O Globo que noticiou em primeira mão: “Toffoli assistiu o jogo entre Real Madrid e Borussia Dortmund, no estádio Wembley, em Londres, junto do empresário Alberto Leite”. Levantada pela lebre da notícia, a caça não pode fugir da perseguição de inquisidores, focas e repórteres e passou a ser alvo do “desaforo tirânico”, que ameaça a “integridade” da democracia concebida sem pecado pela imaculada dona Carmen Lúcia.

A caça, ops, o senhor Toffoli não pode escapulir, não conseguiu se evaporar do mundo trevoso das fofocas, que correm pelas línguas soltas das redes sociais. O cercadinho de sua toga, produto com selo da alta costura do “notório saber jurídico”, não foi suficiente para livrá-lo de explicações. Então, para resguardar sua conduta ilibada, aquela que a Constituição exige, mas só os metidos das redes sociais cobram, ele pegou o chão firme das suas finanças, mão enroscada na barbicha, para dizer que as despesas de viagem e hospedagem foram custeadas pelo seu bolso. Dessa forma, Sua Excelência exorcizou maldosas especulações de relações espúrias, que poderiam dá-lo como devedor de alguma coisa para seu acompanhante, o tal de empresário Alberto Leite.

Mas, como não é segredo de Justiça, todo mundo sabe que os intrépidos, intimoratos ministros nunca andam sem um segurança musculoso, espadaúdo e bem forrado de peito a tiracolo. Aí, alguém descobriu que não era uma suspeita vaga, nem conjectura de quem nada tem a fazer na vida: o senhor Toffoli havia levado para a bela Londres um de seus anjos da guarda de carne e osso. Como o resguardado ministro omitira tal circunstância, a imprensa cobrou explicações de Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal. Embretado na pergunta, Barroso procurou justificar o pagamento do segurança na viagem recreativa do Toffoli, dizendo que “a agressividade e a hostilidade contra membros do STF são gravosas à institucionalidade”.

Mas, nenhum jornalista ousou perguntar: “e o artigo 37 da Constituição Federal, que ordena obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade nos atos da administração pública de qualquer dos Poderes da União, não vale nada”?

A “Instrução Normativa 291/2024” do Supremo Tribunal Federal, que autoriza gastos com segurança para ministros “em viagens internacionais” é o avesso do artigo 37 da Constituição federal. “Instrução Normativa” não pode criar direitos, porque não é lei. Sua validade se esgota na regulamentação de direitos já criados por lei. A “legalidade” de que trata o art. 37 da Constituição Federal é a que emana do Poder Legislativo. A função dos ministros é exercida apenas dentro do país. “Missão institucional” de juízes fora do país, não passa de fantasia bacharelesca, que vale tanto quanto botar pingo em “y”. A segurança é destinada à pessoa e não à instituição para a qual eles prestam serviços. A pessoa não se transforma em instituição, nem a instituição se dilui na pessoa do servidor. E viagem pessoal, recreativa, posta na conta do contribuinte, só pode ser um aborto praticado, por náuseas, pela moralidade...

quarta-feira, 12 de junho de 2024

 PALAVRAS FORA DE LUGAR

“A mentira espalhada pelo poderoso ecossistema digital das plataformas é um desaforo tirânico contra a integridade das democracias. É um instrumento de covardes e egoístas. Se não rompermos o cativeiro digital, chegará o dia em que as próprias mentiras nos matarão”.

Não. Não é o que vocês estão pensando. Não se trata de um poema de metáforas mórbidas, obra de um poeta sorumbático, abatido por vertigem que o deixa de mal com o mundo. Não são exortações de algum tipo que se alimenta de gafanhotos e mel silvestre, um novo João Batista, anunciando o fim dos tempos. Nem são expressões de terror extraídas de alguma obra de reflexões apocalípticas, da lavra de algum profeta. Não. Nada disso.

Por mais cândida que seja a interpretação do leitor, jamais lhe ocorrerá tenham sido tais palavras caídas da boca de uma pessoa de peso, colocada em posição preponderante nos píncaros do Judiciário brasileiro.

Pois quem excluiu tal hipótese, se enganou redondamente. Essa diatribe partiu de ninguém menos do que de uma senhora chamada Cármen Lúcia Antunes Rocha. Dona Cármen, professora de Direito Constitucional, foi colocada no Supremo Tribunal Federal, por obra e graça do torneiro mecânico por profissão e político por eleição Luiz Inácio Lula da Silva. Na semana passada, a referida madame foi empossada, pela segunda vez, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral. O excerto que encabeça o presente texto, embora nada tenha a ver com eleições, faz parte do seu discurso naquela solenidade. Mas, não se pode ignorar o teor condenatório, encharcado de exaltação, que o estigmatiza como uma sentença antecipada: “desaforo tirânico... instrumento de covardes e egoístas”. Trata-se de um juízo de valor exarado em instância desapropriada e sem a temperança que, mesmo fora da jurisdição, é exigida por ordem da credibilidade do Poder Judiciário.

O alvo dessa contundência, ou seja, as rés, fora do processo, do tempo e das circunstâncias que uma solenidade exige, são as chamadas plataformas digitais. O tema que diz respeito a tais empresas está sujeito a disputas judiciais. Dona Cármen Lúcia já antecipou o seu voto, salpicando-o com adjetivos que ninguém gostaria de ouvir: “covardes, egoístas”...

Mas, além do teor do discurso, o que surpreende a qualquer leitor com conhecimentos mínimos de Teoria do Estado, é a relação da “mentira” com a “integridade das democracias”.

A democracia é um sistema de governo. Ela não tem outra natureza senão aquela que define sua essência: a participação do povo, através do voto. E o voto, segundo a Constituição Federal, que a dona Cármen Lúcia, como professora de Direito Constitucional supostamente conhece, é “direto e secreto, com valor igual para todos” (art. 14 da CF). O povo pode votar como quiser, resguardado pela liberdade de consciência, assegurada indistintamente, a mentirosos e autênticos. Onde dona Cármen foi cavoucar a ideia de que a democracia depende só dos puros de coração  ou dotados de outras refulgentes virtudes exaltadas no Sermão da montanha, não se sabe. Talvez a Faculdade Católica, onde ela leciona, tenha  catecismo constitucional próprio.