OS PADRES NÃO TÊM MUITOS AMIGOS
Crônica de Mário Simon
A morte não é um desenho da vida, e pode ser muito mais um acontecimento social do que a perda insolúvel de um ente querido, insubstituível quanto a sua individualidade e quase sempre irreparável no que significam os dons que se vão com ela, a “indesejada das gentes”, como diz Manuel Bandeira.
A morte é insolúvel porque o homem, no resumo dos resumos, e fixando-se a si mesmo no mais profundo de seu ser, não obtém uma resposta clara de sua presença que aponta inexorável para ele mesmo. Ninguém se demora no fatalismo do “Memento homo quia es pulvis et in pulverem reverteris”, palavras latinas que os sacerdotes proferem na quarta-feira de cinzas, depois do carnaval, e que significam “Lembra-te, homem, de que és pó e em pó te hás de tornar”. Duras palavras que voam como borboletas descompromissadas. A morte sempre é a dos outros, não a nossa. E como me dizia um amigo pra lá de espirituoso, “claro que sempre a morte é a dos outros: por acaso tu podes ver a tua própria morte”? Piada de péssimo ânimo!
Mas por que tenho essa introdução nada simpática com tanto assunto para abordar? A morte sempre foi um tema do qual o homem foge como as lebres do incêndio do campo. A resposta vem do título acima, também nada animoso e muito enigmático. Eu digo!
Ele nascera em Espumoso, no distante 1928. Filho de colonos italianos, e seu destino poderia ser o de todos os colonos, ou dos colonos que migraram para a indústria, ou dos colonos que optaram pelo comércio. E hoje estaria por aí, cheio de filhos, netos, poderoso ou não, respeitado ou não, mas com uma história de família própria e descendência generosa. Ou, então, como milhares de filhos de colonos que, nascidos em berço religioso, buscaram nos severos bancos dos seminários os caminhos do sacerdócio e as experiências profundas da fé e do saber teológico, secundados pela opção suprema por uma vida dedicada ao bem-estar dos outros, ao consolo dos que sofrem, ao desvelo dos que erram e se arrependem, à luz que ilumina os possuídos em transes de amargura e insegurança. A dor de todos será também a dor dele. E nessa opção extraordinária estão contidas a abnegação no seu sentido mais amplo e a plena doação sem volta, aquela doação que é perene e tem mão única, isto é, não imagina que se lhe sejam retribuídas suas renúncias e dedicação.
Pois, de certa forma, essa mão única que trilha quem se doa inteiramente a outrem, de certa forma o isola e o empurra para pequenas ou grandes solidões só superadas na alegria inefável da fé e na crença da ventura celeste. Não se trata da alegria do dever cumprido, mas de uma realização íntima, superior só entendida entre as grandes almas e o Criador.
Ela nascera em Espumoso, já disse. Faleceu em Santo Ângelo há poucos dias. Seu nome, Leoclydes Cláudio Basso. Um andarilho do Evangelho, como ele mesmo dizia de si ao referir-se que servira a um grande número de paróquias nas dioceses de Uruguaiana, Santo Ângelo e Cruz Alta nos seus 54 anos de trabalho, sem clemência para si e com muita piedade para os outros. No entardecer da vida, estava em Santo Ângelo, próximo aos seus familiares, doente, sem as forças de que necessitava para ir até o fim com o dinamismo que sempre o acompanhou. Mesmo assim, o sorriso ainda prendia os poucos amigos que lhe restavam. Mas quem sabia disso tudo?
Quando Deus lhe disse, “basta, vem comigo”, ele estava pronto há muito tempo. E foi. E eu estava lá na sua última missa, ele com apenas o corpo presente, e estava lá quando o fecharam na tumba para sempre. Ouvia rezas que ele não ouviria mais e nem mais poderia sentir a tristeza que havia no ar, pois que aquele que doou toda sua vida para tantos milhares de pessoas, descia à terra rodeado de um punhado de amigos, familiares e poucos fiéis.
É, a doação, a verdadeira doação é um caminho de mão única, e por isso doador e beneficiados não se cruzam mais. A esperança é o encontro na vida eterna.
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