terça-feira, 22 de julho de 2008

COLUNA DO MÁRIO SIMON

O SILÊNCIO DA HONRA
Conto de Mário Simon
(Do livro Contos Missioneiros)

Enquanto encilhava do cavalo, repassou de cabeça tudo o que a mulher recomendara. Quem não sabe ler e nem escrever, pra burro não deve servir. Tem de ter cabeça. Sal, fósforo, farinha de trigo, linha, branca, porém, que a preta tá lá, de arrecém costurada a bombacha. Putana, tem otra cosa.
Não se lembrava. Por fim, atravessou no lombo do cavalo uma mala-de-garupa, dez quilos de feijão da cada lado. Deve de dá. Troco tudo pelas compra e sobra, deve sobrá um trago de canha ou mais. Café! Taí, sabia que não era erva. Cabeça!
Montou e meteu os calcanhares nas virilhas do baio velho e saiu a trote. E a trote foi cortando o campo, diminuindo o caminho. A estrada alongava o tempo numa demorada volta à procura de uma pontezinha atrás do capão, lá na várzea.
O gaúcho, no campo vasto, é dono do sentido da liberdade. Se está sozinho, no andar do cavalo, pensa. E pensando, até que dá pro gasto. Mais um ano e boto barriga na Vergínia, largo filho nesse mundo véio. Destino de home é esse mesmo. Cria tem que havê até pra companhia da gente. Tem o caso do gasto, mas na precisão, meto nos pila duas ou três cabeças. Um piá!
Uma perdiz deu seu prrrrrr traiçoeiro no focinho do cavalo e se foi. Acompanhando o vôo direto de bichinho, seu olhar vagueou pela barba-de-bode na direção da baixada. Foi então que avistou um brilho no meio da galharia, lá na boca da picada da ponte. Num instante divisou que era o sol batendo na lataria de um automóvel, parado. Intrigou-se com essa presença, que o patrão anda em viage pro Mato Grosso, ué. Quem poderá de ser?
Não parou. Seguiu descendo a coxilha como que engolido pela paisagem. Lá embaixo, fez alto. Que cuera será esse? E se desse uma bisolhada! Nunca que te facilite, tem gente pra tudo, a patroa sozinha, Vergínia nunca nada resolve. Tem muito tempo pro bolicho. Olhou o sol e deu volta ao cavalo.
Outra vez no alto da coxilha, divisou o automóvel deslocando-se na direção do rancho. La puta! Sou o home da casa, deve de ser comigo. Retornando, sumiu outra vez nas baixadas entre o curioso e apreensivo. No galope, alcançou a última colina já perto da casa. Do alto, divisou o carro à sombra da figueira, na frente dos galpões. Mas sem vivente algum por perto. La puta! Da até pra desconfiá. Nem os cusco se alarmaram. Tem coisa ali!

Ainda a cavalo, rodeou o automóvel. Nada. Desceu em frente a um moirão da cerca, enrolou as rédeas no arame e seguiu até a porta da frente da casa. Nem a cherenga tenho pra um caso qualquer, que em bolicho não se deve ir armado. Pelos fundos. Dou na cozinha e me armo. Então, com pé macio, atravessava o pátio quando, a meio caminho, mas isso é gemido de Vergínia de quando gosta de home nu penetrando os quentes lá dela… esquentada de gozo, prazer de mulher.
Estacou gelado. Nem sabia se um passo dava para frente ou para trás. Uma suspeita antiga, ainda do tempo do noivado. O contador! La puta! É de carro azul, o borrabosta, taí! Me arremeto, pego a faca e castro o fia da puta. É por isso que a Vergínia fica uma jararaca quando falo dele. Tudo verdade o dito do Juvêncio, borracho não mente: te cuide do contador, sou teu amigo, não me leva a mal. E eu caguei ele de pau por causa dessa cadela. Guampudo e não sabia! Me espera sair e chega que nem zorro ladrão! Capo já o cachorro de uma égua. E a arma que não tenho. Fugir e largar pro diabo o fato certo e claro? E a vergonha trancada depois?
Doído e quebrado, depois de momentos indecisos, voltou para o cavalo. Mirou o campo enorme que a pobreza é maior que isso aí. Parece tudo nuviado com essa incerteza, nunca não maginei isso de perto, aí no ouvido, tudo vago e certo, esse campo claro de sol, mas escuro de vista, fico loco de não saber onde está o fim do mundo, me enfio lá. E dói, muito, muito, muito. Quando se deu por si, já estava sobre o cavalo rumando para o bolicho.
O gado pastava perto das mangueiras e algumas vacas já esperavam a abertura do curral. Um bando de garças acompanhava o gado, beliscando aqui e ali o chão. O sol espichava as sombras quando ele estava outra vez apeando em frente à porteira. Trazia as encomendas dentro da mala-de-garupa e cheirava à cachaça. Isso aqui nunca foi tão triste e nem é pra home que se preza. O mundão é maior que tudo e haverá de tê um lugá pra gente limpa. Nunca matei nem nunca robei. A puta véia taí sem mais nem menos.
De fato, Vergínia esperava-o na porta com a cuia do mate na mão. Os cabelos ainda úmidos indicavam que tomara banho recente. Ele desceu a mala-de-garupa largando-a na grama e iniciou a desencilhar o cavalo. Os cachorros cheiravam as compras, e o silêncio triste do campo ficava cada vez maior.




A mulher percebeu alguma diferença no marido, tão quieto. Não era assim de costume. Mas ele largou o cavalo no potreiro, pegou as compras e entrou na casa pelos fundos. Começava a escurecer.
- Você bebeu?
Não houve resposta. Ele tomava água numa caneca e olhava para fora pela janela.
- Você bebeu, eu disse!
- Bebi! Não posso?
Outro silêncio espreitoso, dessa vez da mulher que perdera um pouco a naturalidade esquecendo de oferecer o chimarrão. Ele pegou um balde e saiu em direção às estrebarias. Que mulher é fingidora, pensa que me engana, a vaca. Vai ver, vai ver…
A mesa estava posta, um feijão requentado, coberto de toucinho mal passado, um pedaço de pão e uma caneca de leite. Era tudo, além de um lamparina iluminando fraco na fumaça do óleo diesel. Vergínia esperou muito tempo, depois chamou-o, buscou-o no curral, chorou sozinha. Ele não mais voltou do vazio da noite.
Pela manhã, mal o sol dava o bom-dia ao mundo, via-se uma tropa conduzida por um cavaleiro como a preparar rodeio. Era ele. Mas a tropa foi tomando direção de uma estrada antiga, afastando-se cada vez mais em direção aos fundões do campo, até sumir de vez. E veio o dia total, e veio a tarde e veio a noite.
Na casa, nenhuma janela ou porta se abriu naquele dia. As vacas ficaram encerradas no curral. Os cachorros dormiam nas sombras. E nada mais se movimentou até o dia em que encontraram Vergínia caída ao lado da mesa, na boca ainda uma baba esverdeada, nos olhos, desmesuradamente abertos, o pavor do mundo, na cor, um azulado negro da pele inchada.
Dele, ninguém nunca mais soube.

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