terça-feira, 6 de abril de 2010

COM A PALAVRA, PAULO MARINHO

PRÁTICA ÉTICA

Paulo Marinho

A cena é a seguinte: você, satisfeito da vida, roda com seu carrinho carregado com as compras em direção aos caixas do supermercado. Anos de experiência lhe ensinaram que nesta hora a situação exige sentidos – visuais, matemáticos e cronológicos – acurados e simultâneos. Não basta um ou outro agindo individualmente. A invariável fila que você enfrentará não só deve ser a menor em número de pessoas, mas aquela em que os carrinhos dessas pessoas estejam menos cheios. A sincronia entre longitude, espaço, tempo e volume precisa ser a mais perfeita possível. Por isso, você ronda os caixas como um felino à procura da presa.

Então, num dos guichês, a prosaica imagem de uma senhora segurando uma garrafa de refrigerante debaixo do sovaco, logo atrás de uma outra que já está pagando a conta, faz com que o lince que existe em você exulte. Logicamente você se coloca faceiro e impávido nesta fila, pois entre as tantas que seus olhos repassaram, pelo conjunto esta é a melhor de todas. Uma fila expressa, rara. Sua alegria é tanta que você esfrega as mãos e dá mini pulinhos, enquanto a beatífica endorfina invade seu corpo em pequenos uiuiuis, embora sua vontade é se sacudir de pura alegria num batidão de funk.

Então, surge um homem com seu carrinho abarrotado – feito um transatlântico insólito e ameaçador – e se aboleta a sua frente. É o marido da mulher do refrigerante, que disfarçada e dissimuladamente guardava o lugar pra ele. Seus aminoácidos fogem covardemente, dando lugar à adrenalina oportunista. Doses cavalares dela escorrem pelos cantos da sua boca. Qualquer reação diante da iniquidade, como ameaçar bater no casal com um embutido de mortadela de cinco quilos ou abandonar a fila, avisando aos berros que vai buscar o trabuco no carro, vai estragar seu dia. Definitiva e inapelavelmente você sairá do supermercado irritadíssimo.

Ausência de ética irrita mesmo. Irrita tanto que a mídia vive discutindo-a. Reúne cinco ou seis sabichões, faz uma mesa redonda e debate a ética como doutrina filosófica. Cita os pré-socráticos e aristotélicos, os fundamentos da conduta humana na política, nos movimentos sociais, antropológicos e noutras faixas pomposas. Mas, esquece é de discutir a ética da esquina. A ética paroquial. A falta de ética do casal que guarda fila em supermercado. Do sujeito que tem o rádio do carro furtado e sai correndo pra comprar outro dos ladrões automotivos. Dos canalhas que se adonam das vagas para pessoas portadoras de necessidades especiais nos estacionamentos e que, flagrados, descaradamente fingem que mancam.

A mídia deveria discutir a ética do insano que joga lixo na boca-de-lobo e depois sai xingando os governos de ineptos, por causa da inundação das ruas. Dos que não respeitam a faixa de segurança, dos que atendem celular aos berros no elevador, dos que conversam no cinema e dos cinemas que cobram um horror pela singela pipoca e colocam meio iceberg para dar volume ao refrigerante. Dos malditos que vendem picolé na praia com trezentos por cento de aumento. Enfim, dos exploradores, aproveitadores e corruptores em geral.

Desde a mais tenra idade, uma pergunta deveria ser batida e rebatida, como água mole em pedra dura: “como devo agir perante os outros?”. A resposta a esta questão central, acredite, se não ajudar para um mundo melhor, no mínimo iria moralizar as filas. Qualquer fila.

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