Janer Cristaldo
Um homem se define por seu trabalho – escrevi há pouco. Se não trabalha, é um inútil. Objeta um leitor:
- Profissão é parte do que uma pessoa é. Não tudo. Possivelmente nem algo com o qual ela se identifica em particular, e sim algo que ela, muitas vezes por contingência do destino, calhou de fazer, e portanto não é algo que representa suas crenças, posições, modo de viver e ações como um todo. Profissão é parte da vida das pessoas. E nem de todas. Se fulano vive de renda ou herança, problema (ou sorte) dele. Isso não define caráter. O que você faz para ganhar seu pão é problema seu, e não vejo por que tenha que ser o que te define como ser humano, seu valor absoluto, ou o que seja que funcione como termômetro de qualidade de fulano.
Ok, leitor. Admitamos que profissão não seja tudo. Pode não definir caráter. Mas quem não trabalha continua sendo um inútil. Já nas primeiras páginas do Gênesis, o Senhor transforma o trabalho em maldição, ao jogar Adão fora do Éden para lavrar a terra.
“E ao homem disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei dizendo: Não comerás dela; maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos; e comerás das ervas do campo. Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás”.
Para o deus judaico, trabalho é castigo. Felicidade é viver sem fazer nada, numa espécie de paraíso, onde os frutos da terra estão ao alcance da mão. Esta apologia do ócio é retomada no Novo Testamento, mais precisamente em Mateus:
“Olhai as aves do céu, não semeiam nem colhem e nem juntam em celeiros. E no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Aprendei com os lírios do campo, vede como crescem, e não trabalham e nem fiam. E no entanto, nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles”.
Pode ser. Mas eu me entediaria como uma ostra se tivesse de passar a vida toda sem fazer nada. Segundo o leitor, as pessoas podem viver de renda ou herança e trabalho não funciona como termômetro de qualidade de ninguém. Permito-me discordar. Um homem que nada faz, para mim, nada é. Há, é claro, algumas diferenças entre ser regente de orquestra e balconista, piloto de Boeing e taxista, chef e padeiro.
A propósito, em meus dias de Santa Maria, tive como companheiro de bar um poeta. Sua meta na vida era fazer poemas. Voltei a encontrá-lo alguns anos mais tarde. Perguntei se ainda fazia poemas.
- Não mais. Agora faço pães.
Aleluia! Os poetas que me desculpem. Mas a humanidade precisa mais de pães do que de poemas. Sem falar que pães são em geral mais saborosos que muitos poemas. Particularmente se falamos de poesia contemporânea.
Há obviamente o trabalho ruim, aquele que não escolhemos e jamais escolheríamos. Há o trabalho que até pode ser agradável, mas é mal pago. Quando comecei a trabalhar em jornal, ganhava apenas oito cruzeiros mais que o contínuo da redação. Mas me sentia muito bem quando, ao final do mês, passava no caixa para receber meus míseros trocados. Com eles, me dedicava a meus prazeres. Raras pessoas no mundo podem orgulhar-se do trabalho que fazem. O segredo do sentir-se bem com a vida é encontrar uma fórmula de chegar lá.
Quando encontro alguém de quem ainda não tenho referências, minha pergunta é: o que você faz? É pergunta que recomendo a toda pessoa que encontra uma outra que ainda não conhece. Se não sabemos o que uma pessoa faz, não sabemos quem ela é. Vive de rendas ou de herança? Pode ser. Mas se não tem uma profissão, pouco ou nada tem a me dizer.
Conheço pessoas que vivem sem nada fazer. Há muita mulher neste mundo que vive de pensão, distribuindo seu ócio entre a academia, o instituto de beleza e a novela das oito. Suas cabeças dão uma boa idéia do vácuo absoluto. Não trabalhar é a fórmula mais eficaz de uma mulher anular-se. Os muçulmanos, que alimentam um medo ancestral ao feminino, sabem disto. E proíbem suas mulheres de trabalhar.
Uma das coisas que me agrada em São Paulo são as mulheres com quem cruzo em meu dia-a-dia. São pessoas que vem ou vão para um trabalho, freqüentam bares e dispensam machos para pagar suas contas. Altivas, são donas dos próprios narizes e gerem suas próprias vidas, sejam minhas gerentas de banco ou as meninas que me servem nos bares ou cafés.
Em meus dias de Santa Catarina, me disse um aluno: meu sonho é ser rico e viver tomando uísque e olhando o mar. Tive pena da mísera espécie humana que ele representava. É possível que tenha chegado lá. Não o invejo.
Tampouco tenho maior apreço por quem pensa só em dinheiro. Dinheiro é bom. Mas se sua busca nos torna a vida desagradável, não é bom. Eu poderia ter enriquecido com a advocacia. Mas não me sentiria bem na pele de um advogado. Optei então pelo jornalismo. Ganhava pouco, mas era ofício que algum prazer me proporcionava. Jornalismo é cachaça. A adrenalina de um fechamento de jornal é algo que vicia. Más vale un gusto que cien pesos, dícen los orientales.
Algum leitor deve ter visto o filme Mediterrâneo, de Gabriele Salvatores. É uma das mais belas mentiras da história do cinema. Pego uma sinopse da Web: durante a Segunda Guerra, com a missão de defender o lugar contra uma possível invasão inimiga, um punhado de soldados é deixado numa pequena ilha do mar da Grécia. Mas, o vilarejo parece abandonado e como não tem nenhum único inimigo a vista os soldados aproveitam o tempo para relaxar um pouco. Porém, a ilha não está deserta e quando os habitantes do local percebem que os soldados italianos são inofensivos, saem de seus esconderijos nas montanhas para dar seqüência a suas pacíficas vidas. Portanto, logo os soldados descobrem que serem deixados para trás em uma paradisíaca ilha grega esquecida por Deus, não é uma coisa tão ruim assim...
O diretor não engana seu público: o filme é dedicado a todos os escapistas do mundo. Ilha grega pode ser uma idéia de paraíso para muita gente. Por uma semana, até concordo. Para toda a vida, seria para mim um inferno. Os italianos se dedicam a um eterno dolce farniente. A única pessoa que parece ter uma profissão na ilha é Vassilissa. Se apresenta alegremente ao batalhão. O capitão pergunta:
- Che lavoro fare?
- Io sono la puta.
E passa a exercer orgulhosamente sua profissão. Os soldados perderam o sentido de suas vidas. Vassilissa não: http://www.youtube.com/watch?v=B9VOQoH-Kb0
A profissão pode não ser das mais nobres. Mas é melhor do que não fazer nada.
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