Justiça,
a 235ª vítima da tragédia em Santa Maria/RS
Ticiano Figueiredo
No
dia 27 de janeiro de 2013 a população brasileira acordou com a triste e
desesperadora notícia de que mais de 200 pessoas haviam morrido em razão de um
incêndio ocorrido no interior de uma casa noturna, na cidade de Santa Maria,
interior do estado do Rio Grande do Sul.
Tão logo o fato veio à tona, a mídia escrita, falada e
televisionada imediatamente trataram de buscar um culpado por toda aquela
situação. Inicialmente teria sido o segurança que, por não ter visto fumaça nem
fogo, impediu, em um primeiro momento, a saída dos clientes, pensando se tratar
de uma tentativa de se evadir do local sem pagar o que foi consumido.
Em seguida a “culpa” passou a recair sobre a banda, que
teria programado um show pirotécnico – ao que parece uma característica do
grupo musical, bastante conhecido na região – sem observar as normas de
segurança.
Por fim, a responsabilidade chegou aos sócios do
estabelecimento, eis que em tese estariam funcionando com o alvará vencido e
sem equipamentos e plano de fuga adequados para o local.
Não demoraria muito e – diante da enorme repercussão que
os fatos tomaram na imprensa – alguma autoridade pública se valeria dessa
tragédia para catapultar sua exposição nos órgãos de imprensa nacional. Não
demorou!
No dia seguinte a esses tristes fatos, a população
brasileira acordou com a notícia de que foi decretada a prisão temporária dos
donos do estabelecimento comercial onde o incêndio ocorreu e dos músicos que
teriam iniciado o show pirotécnico no interior da boate.
A fim de justificar o seu pedido de segregação cautelar
dos envolvidos, o delegado responsável pelo inquérito policial apareceu em rede
nacional alegando que tal medida foi tomada para ajudar a esclarecer como o fogo
começou e por que as pessoas não conseguiam sair da boate.
Ou seja, escancaradamente a autoridade policial,
responsável pelas investigações prendeu os supostos responsáveis por esses
tristes fatos, para que estes possam esclarecer questões técnicas, distorcendo,
assim, de forma flagrante o uso indevido dessa gravíssima medida cautelar. Ora,
não bastava interrogá-los para isso?
Conforme se depreende do art. 1° da Lei n° 7960/89, a
prisão temporária é medida de exceção no direito penal brasileiro é somente
deve ser utilizada quando houver fundadas razões de autoria e participação de
um cidadão nos crimes abaixo elencados e desde que sejam imprescindíveis para o
deslinde da investigação:
a) homicídio doloso (art. 121,
caput, e seu § 2°);
b) sequestro ou cárcere privado
(art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°);
c) roubo (art. 157, caput, e
seus §§ 1°, 2° e 3°);
d) extorsão (art. 158, caput, e
seus §§ 1° e 2°);
e) extorsão mediante sequestro
(art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);
f) estupro (art. 213, caput, e sua
combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);
g) atentado violento ao pudor
(art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);
h) rapto violento (art. 219, e
sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);
i) epidemia com resultado de
morte (art. 267, § 1°);
j) envenenamento de água
potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art.
270, caput, combinado com art. 285);
l) quadrilha ou bando (art.
288), todos do Código Penal;
m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3°
da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de suas formas típicas;
n) tráfico de drogas (art. 12
da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);
o) crimes contra o sistema
financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986).
Ora, em qual dessas hipóteses aquelas pessoas se
enquadrariam? Homicídio doloso, em razão de um possível dolo eventual? Só se
considerarmos que os donos do estabelecimento e os artistas da banda em algum
momento assumiram o risco e aderiram ao resultado morte. Nesse caso, impõe-se
reconhecer que o dolo destes foi literalmente o de suicídio, já que um dos
sócios, inclusive, está internado em razão da fumaça inalada e um dos artistas
morreu.
Mas, ainda que se admitisse a hipótese de homicídio
doloso, é certo que até o presente momento a instância penal não foi
instaurada, não há sequer denúncia oferecida. Há, sim, uma série de fatos a serem
esclarecidos, os quais, a princípio, não necessitam da prisão dos donos da
boate e dos músicos para serem explicados.
Mais uma vez, portando, o Direito Penal teve sua função
distorcida pelo "Estado Midiático Policialesco sem Direito".
O que aconteceu em Santa Maria foi extremamente trágico e
doloroso para toda a sociedade, em especial para os familiares das vítimas.
Mas, pelo que se viu na mídia até o momento, sequer foi
instaurada a ação penal e não há qualquer fato que justifique a prisão dos
responsáveis – nem a notícia de que os computadores da boate não foram
queimados, mas sim desapareceram do local. Porém, se este foi o argumento
utilizado para decretação da medida cautelar de segregação da liberdade, pobre
dos músicos, que sequer poderiam entregar os tais computadores, já que não são
donos do local...
Ademais, a recentíssima mudança na norma processual, ao
trazer a possibilidade de uso de medidas alternativas à prisão, escancarou a
excepcionalidade desse tipo de cautelar. Note-se que seria possível ao juiz,
por exemplo, proibir os investigados de comparecer ao local dos fatos, de
manter relações ou se aproximar de determinada pessoa, poderia, ainda, impor a
estes o comparecimento periódico em juízo, dentre outras.
É inequívoco, portanto, o uso indevido feito pelo
delegado desse tipo de medida cautelar de segregação da liberdade. Mormente
quando não se sabe nem se estes “presos” responderão por crime doloso ou
culposo, crime cuja pena final será privativa de liberdade ou restritiva de
direito.
Ou seja, muito provavelmente a medida cautelar a que os
empresários e músicos encontram-se submetidos é muito mais gravosa do que
futura e incerta sentença definitiva.
A não ser que ordem pública, a instrução criminal, a
futura aplicação da lei penal ou ordem econômica estivessem em risco – o que
deveria ser demonstrado com base em dados concretos e não a partir de meras
ilações e criações mentais dos órgãos investigatórios – nada justifica a prisão
daqueles cidadãos.
Seria prudente, sim, prender as autoridades públicas
responsáveis por esse manifesto abuso de poder. Da mesma forma seria prudente
providenciar a inclusão de um novo crime no ordenamento jurídico pátrio:
"excessiva vontade de aparecer na mídia"
Note-se que não se está aqui falando sobre a responsabilidade
civil acerca dos fatos ocorridos na cidade de Santa Maria. Essa sim é objetiva
e, provavelmente, imporá aos responsáveis pelo local da festa o ônus de
ressarcir todos os danos morais e materiais das vítimas e familiares da
tragédia daquela cidade.
Contudo, essa objetividade jamais poderá alcançar a
responsabilidade penal segundo os ditamos do nosso ordenamento jurídico pátrio.
Essa deverá ser apurada respeitando os princípios e garantias individuais
conseguidas a duras penas pela nossa sociedade, sem, jamais, sofrer qualquer
interferência dos veículos de comunicação.
Lamentável...
Às vítimas e familiares dessa tragédia nacional, meus
sinceros sentimentos. Que DEUS possa confortá-los nesse momento de dor
incontrolável!
Ao direito penal, meus pêsames diante da morte da justiça
e do Estado Democrático de Direito... Não temos mais justiça... Temos
justiceiros!
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* Ticiano Figueiredo é
advogado Criminalista sócio do escritório Figueiredo & Ranña
Advogados Associados. É bacharel em Direito pela Universidade
de Brasília, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de
Coimbra e secretário-geral do Instituto de Garantias Penais
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FONTE:
Migalhas –www.migalhas.com.br