A PAIXÃO DEPOIS DA MORTE
João
Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com
O destino, que é tecido inteiramente de acasos,
organiza o roteiro da nossa existência, vai botando os pingos nos “ii” e o
ponto final em cada capítulo. Às vezes nos surpreende, ou surpreende os que
ficaram chorando por nós.
Vejam só. Fazendo a cobertura dessa tragédia que ainda
teima em nos arrancar lágrimas, um jornalista estava percorrendo aquela
pungente exposição de cadáveres estendidos um ao lado do outro, à espera da
identificação, quando um dos corpos lhe reteve o olhar. Era o de uma jovem
morena, de cabelos negros, bem alinhados, como se tivessem sido recentemente
penteados. A cascata negra e brilhante lhe descia até um pouco abaixo dos
ombros. Tinha um rosto bem feito, que parecia traçado a nanquim, a boca
formosa, o nariz pequeno. Só escondia a cor dos olhos, porque tinha as
pálpebras semicerradas.
Naquele momento, o profissional foi subjugado pelo
homem. Fascinado por uma beleza que lhe
parecia irreal, ele se entregou às exigências do ego. Quem seria ela? Quem
seria essa menina, que estava longe de ter uma vida atulhada de histórias? Iniciando
uma carreira universitária que para muitos não passa de sonho? Vivendo o
fascínio do primeiro amor, ou sofrendo, quem sabe, a tortura da primeira
desilusão?
Com a serenidade de quem não lamenta um paraíso
perdido, sem o ar de solidão dos mortos, ela parecia prestes a acordar, como a
menina bíblica ressuscitada pelo Cristo e a bela, despertada pelo beijo do
príncipe. E o jornalista, tomado pelo delírio dos mitos, que só a paixão pode
justificar, começou a acalentar o desejo de ser visto por ela, de ser
descoberto por ela, de receber dela o primeiro sorriso e o primeiro abraço,
quando aquele sono a libertasse para retomar a vida aos dezessete anos.
Não muito distante dali, outra jovem se entregava ao
pranto, chorando por aquele desconhecido que a havia salvado, 24 horas atrás.
Engolfada numa fumaça espessa, espicaçada por gotas de fogo que pingavam do
teto, já ia desfalecer, quando foi socorrida. Apertando-a contra si, passando
por cima de gente caída, resfolegando, o rapaz lhe assoprava palavras de
coragem, de incentivo para a vida, fazendo-a sentir-se impessoal, desumanizada,
com o vestido levantado até o nariz, para fugir da sufocação. Vencendo todos os
obstáculos, dos vivos acuados pelo desespero, dos mortos que se deixavam
pisotear, da multidão sem rosto dominada pelo pânico, deixou-a na calçada e,
ainda arfando, lhe disse que voltaria, para salvar os amigos.
Naquele momento, sem saber donde vinha, subiu nos
lábios da moça uma súplica que ela não pôde reprimir: “pelo amor de Deus, não
faça isso, fique!”
O rapaz não lhe atendeu à suplica. Voltou para a boate,
onde o esperavam as armadilhas da morte: não retornou para a vida.
A moça não o esquecerá jamais. Ela quer uma
fotografia, um lenço, uma gravata, qualquer coisa dele que possa ajudá-la a
viver, com aquela fenda no coração. Nada, ninguém arrancará esse homem de sua
vida, do roteiro planejado pelo destino, que reservou, para um desconhecido
coadjuvante, o papel principal: aquele que permitiu que ela continuasse vivendo.
A paixão do jornalista pela moça morta, e a da moça,
por aquele que lhe devolveu à vida, chegaram tarde. A morte veio antes. Mas construiu
o que só ela pode construir: o amor eterno. Porque só o amor impossível é
eterno.
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