quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


A PAIXÃO DEPOIS DA MORTE

João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com

O destino, que é tecido inteiramente de acasos, organiza o roteiro da nossa existência, vai botando os pingos nos “ii” e o ponto final em cada capítulo. Às vezes nos surpreende, ou surpreende os que ficaram chorando por nós.
Vejam só. Fazendo a cobertura dessa tragédia que ainda teima em nos arrancar lágrimas, um jornalista estava percorrendo aquela pungente exposição de cadáveres estendidos um ao lado do outro, à espera da identificação, quando um dos corpos lhe reteve o olhar. Era o de uma jovem morena, de cabelos negros, bem alinhados, como se tivessem sido recentemente penteados. A cascata negra e brilhante lhe descia até um pouco abaixo dos ombros. Tinha um rosto bem feito, que parecia traçado a nanquim, a boca formosa, o nariz pequeno. Só escondia a cor dos olhos, porque tinha as pálpebras semicerradas.
Naquele momento, o profissional foi subjugado pelo homem. Fascinado por uma  beleza que lhe parecia irreal, ele se entregou às exigências do ego. Quem seria ela? Quem seria essa menina, que estava longe de ter uma vida atulhada de histórias? Iniciando uma carreira universitária que para muitos não passa de sonho? Vivendo o fascínio do primeiro amor, ou sofrendo, quem sabe, a tortura da primeira desilusão?
Com a serenidade de quem não lamenta um paraíso perdido, sem o ar de solidão dos mortos, ela parecia prestes a acordar, como a menina bíblica ressuscitada pelo Cristo e a bela, despertada pelo beijo do príncipe. E o jornalista, tomado pelo delírio dos mitos, que só a paixão pode justificar, começou a acalentar o desejo de ser visto por ela, de ser descoberto por ela, de receber dela o primeiro sorriso e o primeiro abraço, quando aquele sono a libertasse para retomar a vida aos dezessete anos.
Não muito distante dali, outra jovem se entregava ao pranto, chorando por aquele desconhecido que a havia salvado, 24 horas atrás. Engolfada numa fumaça espessa, espicaçada por gotas de fogo que pingavam do teto, já ia desfalecer, quando foi socorrida. Apertando-a contra si, passando por cima de gente caída, resfolegando, o rapaz lhe assoprava palavras de coragem, de incentivo para a vida, fazendo-a sentir-se impessoal, desumanizada, com o vestido levantado até o nariz, para fugir da sufocação. Vencendo todos os obstáculos, dos vivos acuados pelo desespero, dos mortos que se deixavam pisotear, da multidão sem rosto dominada pelo pânico, deixou-a na calçada e, ainda arfando, lhe disse que voltaria, para salvar os amigos.
Naquele momento, sem saber donde vinha, subiu nos lábios da moça uma súplica que ela não pôde reprimir: “pelo amor de Deus, não faça isso, fique!”
O rapaz não lhe atendeu à suplica. Voltou para a boate, onde o esperavam as armadilhas da morte: não retornou para a vida.
A moça não o esquecerá jamais. Ela quer uma fotografia, um lenço, uma gravata, qualquer coisa dele que possa ajudá-la a viver, com aquela fenda no coração. Nada, ninguém arrancará esse homem de sua vida, do roteiro planejado pelo destino, que reservou, para um desconhecido coadjuvante, o papel principal: aquele que permitiu  que ela continuasse vivendo.
A paixão do jornalista pela moça morta, e a da moça, por aquele que lhe devolveu à vida, chegaram tarde. A morte veio antes. Mas construiu o que só ela pode construir: o amor eterno. Porque só o amor impossível é eterno.





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